Maria do Rosário Pedreira – “Hoje apareceu…”
09.02.2014
Hoje apareceu um pombo morto no
quintal. Não foi o gato, que morreu
antes dele num sábado sem sol, a não
querer já a minha mão, a não querer
colo. Fiquei cansada: houve sempre
tantas mortes na minha vida – os meus
pais, tu, a menina pendurada no meu
seio, os meus irmãos – e, como o pombo,
também estas asas já vão reclamando
voos noutros céus. Se eu
quisesse camélias brancas na minha
sepultura, como as que levei à igreja
quando nos casámos, ou arrastar para a
escuridão da terra o vago ouro das
nossas alianças; se tudo o que juntei
(e foi tão pouco) pudesse ainda ficar
com os que me faltam, dava estes dedos
deformados ao tear das palavras e
escrevia um bilhete, como as raparigas
que se envenenam por amor; e havia de
pousa-lo no peito depois de me deitar, já
lavada e vestida, para que ninguém se
desse ao trabalho, que eu conheço essa
dor. Mas partir é mesmo a minha
última vontade: tu já morreste, morreu o gato
há dias; encontrei hoje um pombo morto no
quintal e, quando o enterrar, não
haverá já nada que me prenda – vou-me
embora daqui tão só como cheguei, sem ter
deixado a ninguém o nome que me deram.
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