Luandino Vieira – “Canção para Luanda”
15.02.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
José Vieira Mateus da Graça, português de nascimento, passou a juventude em Luanda. Detido pela PIDE, pela primeira vez em 1959, foi condenado a 14 anos de prisão, em 1961. Em 21 de Maio de 1965, a Sociedade Portuguesa de Escritores, então presidida por Jacinto do Prado Coelho, atribuiu-lhe o Grande Prémio de Novela pela sua obra Luuanda. Na sequência deste facto a SPE foi assaltada e destruída por elementos da polícia política PIDE. De regresso a Luanda, desempenhou vários lugares importantes. Voltou a Portugal em 1992 onde vive isolado, na quinta de um amigo. (Wikipédia)
15.02.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
A pergunta no ar
no mar
na boca de todos nós:
— Luanda onde está?
Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos
– Xê
mana Rosa peixeira
responde?
— Mano
Não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!
«Ola almoço, ola almoçoée
matona calapau
ji ferrera ji ferrerééé»
— E você
mana Maria quitandeira
vendendo maboque
os seios-maboque
gritando
saltando
os pés percorrendo
caminhos vermelhos
de todos os dias?
«maboque m’boquinha boa
doce dócinha»
— Mano
não pode responder
o tempo é pequeno
Para vender!
Zefa mulata
o corpo vendido
baton nos lábios
os brincos de lata
sorri
abrindo seu corpo
— seu corpo-cubata!
Seu corpo vendido
viajado
de noite e dia.
— Luanda onde está?
Mana Zefa mulata
o corpo-cubata
os brincos de lata
vai-se deitar
com quem lhe pagar
– precisa comer!
Mano dos jornais
Luanda onde está?
As casas antigas
o barro vermelho
as nossas cantigas
tractor derrubou?
Meninos nas ruas
caçambulas
quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?
— Manos
Rosa peixeira
quitandeira Maria
você também
Zefa mulata
dos brincos de lata
— Luanda onde está?
Sorrindo
as quindas no chão
laranjas e peixe
maboque docinho
a esperança nos olhos
a certeza nas mãos
mana Rosa peixeira
quitandeira Maria
Zefa mulata
— os panos pintados
garridos
caídos
mostraram o coração:
— Luanda está aqui!
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10.02.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
Hoje não trago nada que dizer.
Sossega o teu rosto no meu peito
Repousa em mim a tua tristeza.
Ouve os segredos que te não digo
E a canção de forte esperança
Que germina e rompe devagarinho
Por todos os caminhos da vida,
Na pureza desta tarde,
Ao lusco fusco,
Abre comigo os olhos para os belos horizontes
Cada poente mistifica sempre
Uma nova madrugada.
Repousa em mim a tua tristeza.
Abre comigo os olhos para a vida.
Hoje a minha voz é de búzio
Fala baixo e em segredo
Numa canção que enche o mar, o mundo,
E germina e rompe devagarinho
Por sobre os escombros de luz
Deste poente que cai sobre o mar
Numa angústia de eternidade.
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02.02.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
(Pintura dos Meninos de Angola)
A maré sobe
longínqua e distante,
mas sobe…
Tem a força de um atlante
e a frescura gloriosa da manhã!
Podem forjar matadoiros,
abrir veia por veia
os pulsos que não suportam algemas;
e preparar sorvedoiros
e emboscadas de atalaia
e erguer barreiras na praia
contra a onda que se alteia
para afogar nos seus braços
abismos de escuridão…
Areias louras da praia
a hora da maré cheia
cantai-a,
não há barreira que tolha
a gloriosa ascensão!
Onde o poder p’ra impedir
que a Primavera floresça?
Aconteça o que aconteça,
a Primavera há-de vir
e a maré,
longínqua e distante,
continuará a subir…
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28.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
Ai barco que me levasse
a um rio que me engolisse
donde eu não mais regressasse
p’ra que mais ninguém me visse!
Ai barco que me levasse
sem vela ou remos, nem leme
p’ra dentro de todo o olvido
onde não se ama nem teme.
Ai barco que me levasse
aos tesouros conquistados
por entre esquinas de perigos
dos mil caminhos trilhados.
Ai — onde? — que me levasse
bem dentro de um vendaval…
Barco berço, barco esquife
onde tudo fosse igual.
Ai barco que me levasse
toda estendida em seu fundo!
Nesga de céu a bastar-me
toda a saudade do mundo!
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25.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
Das mentiras loucas que me envolvem
Vou quebrar os liames um a um
E da angústia da libertação
Nascerá um dia a paz
Do ser e do não ser.
Das mentiras vãs que me amordaçam
os véus arrancarei a um e um
Tristes despojos dum passado velho
que em mim se quis perpetuar.
E deixarei um rasto de desilusões;
Um caminho de lágrimas choradas;
Um pouco do que fui em cada dia.
Mas ficarei seguro e afirmado,
Com a serenidade dum Buda na floresta,
Com a nudez dum Cristo no redil.
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