“Ladainha dos póstumos Natais” de David Mourão-Ferreira.
17.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
David de Jesus Mourão-Ferreira (24 de Fevereiro de 1927 — 16 de Junho de 1996) foi um escritor e poeta lisboeta licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1951, onde mais tarde, em 1957, foi professor, tendo-se destacado como um dos grandes poetas contemporâneos do Século XX.
17.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido
Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito
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27.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente
promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente
Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro
ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias
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29.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar
Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;
o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;
se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;
não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!
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23.03.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
Ó Lua, espelho do chão
que andas no céu pendurado,
holofote da ilusão
pelo turismo alugado,
não ilumines em vão
os sulcos do empedrado!
Denuncia nas valetas
as sombras que tu arrastas:
prostitutas, proxenetas,
silhuetas de pederastas…
Colos brancos. Rendas pretas.
Casas tortas. Pedras gastas.
As rugas do sobressalto,
Ó Lua não as destruas!
Tu viste carros de assalto
rondarem por estas ruas;
viste rolarem no asfalto
vestes mais alvas que as tuas.
Foste a lua a que se expunha
aos tiros a multidão;
espelhaste na tua unha
a secular aflição;
e já foste testemuha
dos fogos da Inquisição.
Procissões do Santo Ofício…
Fileiras de condenados…
À noite, nem só o vício
rasteja por estes lados:
as serpentes do suplício
silvam nos pátios murados…
Ó Lua, guarda o retrato
de tudo, tudo a que assistas!
Não queiras passar ao lado
da desgraça que visitas!
Nem queiras ser infamado
passatempo de turistas!
Clorofórmio dos enfermos,
se foges dos hospitais,
então recolhe-te aos ermos
desertos celestiais!
E quando te não merecermos
não te acendas nunca mais!
David Mourão-Ferreira, Obra Poética,
Lisboa, Editorial Presença, 1996, 2.ª ed.
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