António Botto – “Canções – As cartas devolvidas”
08.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
António Tomás Botto (Concavada, Abrantes, 17 de Agosto de 1897 — Rio de Janeiro, 16 de Março de 1959) foi um poeta português. A sua obra mais conhecida, e também a mais polémica, é o livro de poesia "Canções" que, pelo seu carácter abertamente homossexual, causou grande agitação nos meios religiosamente conservadores da época.
08.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
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Ainda bem que nos afastámos. Ainda bem que o fizemos. Eu não podia mais… Era impossível, acredita. Se continuássemos a viver como vivíamos — e mudar, dificílimo seria, — se nós desistíssemos desta separação ou dêste sacrifício, apartávamos, certamente, as nossas almas, e para sempre! Ainda bem que nos afastámos. Ainda bem que o fizemos. Dizes-me na tua carta relida já quatro vezes que a tranqüilidade da nossa vida vale mais que tôdas as paixões, que todos os desejos… Tu dás-lhe êsse nome; mas, para mim, tem outro: — sim; chamemos-lhe egoismo. O teu é sacrificar todos os prazeres para evitar uma dor; — és cobarde e comodista. O meu, tambem se chama egoismo, porém, é egoismo diferente, é egoismo ideal: — sacrificar tudo ainda que o sacrifício possa destruir a minha vida e essa destruïção entristeça para sempre a minha alma. Ah!, como nós somos opostos! Tu acabaste para esquecer ou pôr de parte a minha camaradagem; eu, acabei para te lembrar continuamente e para mais te pertencer. Tinha que ser: está bem. A vida é uma sucessão de imagens; se umas se apagam há outras que permanecem…
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Notícias da minha vida — para quê? O que tu possas imaginar dela talvez tenha mais encanto. Notícias minhas? Caberiam em três palavras: — Tento, apenas, esquecer-te!
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Eu não devia responder á tua carta; nem sei dizer porque o faço. Também de que servia dizer-te? A verdade parece traição àqueles que vivem da mentira. Tentei esclarecer-te, para meu sossêgo e minha tranqüilidade êsse desagradável mal entendido que deu origem á nossa frieza actual, tão firme, segundo parece. Não quizeste escutar-me. Pouco depois, saías, — sem me deixar sequer a esmola de uma palavra… Dias passaram, longos dias decorreram, e hoje, a tua carta de quatro linhas vem dizer-me que te arrependes da simpatia que me déste… E num tom sêco terminas: que eu que sou bem diferente daquele que tu julgaras… Nada respondo. Apenas te lembro que a vida é cruel, imensamente cruel; e a sua maior crueldade é não permitir que pessoas da nossa estima possam conhecer a verdade dos nossos pensamentos e a verdade do nosso sentir. Adeus. As grandes paixões são para as grandes almas.
(Foi respeitada a grafia original do autor)
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