Nota biográfica

Mário Dionísio (Lisboa, 16 de Julho de 1916 - Lisboa, 17 de Novembro de 1993) foi um escritor e pintor português do século XX.

Mário Dionísio – “Um dia…”

15.07.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

menina

Um dia

quando já não vieres dizer-me  Vem

jantar
 


quando já não tiveres dificuldade

em chegar ao puxador

da porta  quando
 


já não vieres dizer-me  Pai

vem ver os meus deveres
 


quando esta luz que trazes nos cabelos

já não escorrer nos papéis em que trabalho
 


para ti será o começo de tudo
 


Um outro dia haverá talvez para os teus sonhos

um outro mundo acolherá talvez enfim a tua oferenda
 


Hás-de ter alguma impaciência enquanto falo

Ouvirás com encanto alguém que não conheço

nem talvez ainda exista neste instante
 


Mas para mim será já tão frio e já tão tarde
 


E nem mesmo uma lembrança amarga

ou doce ficará

desta hora redonda

em que ninguém repara

Facebooktwittermailby feather

Sophia de Mello Breyner e Andresen – “Um dia”

17.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Um dia, gastos, voltaremos
A viver livres como os animais
E mesmo tão cansados floriremos
Irmãos vivos do mar e dos pinhais.

O vento levará os mil cansaços
Dos gestos agitados irreais
E há de voltar aos nosso membros lassos
A leve rapidez dos animais.

Só então poderemos caminhar
Através do mistério que se embala
No verde dos pinhais na voz do mar
E em nós germinará a sua fala.

Facebooktwittermailby feather

Margarida Piloto Garcia – “Um dia”

17.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Um dia
vou dizer-te palavras bordadas a bilros
traçando um labirinto que tu procuras percorrer com os lábios.
Vou olhar-te com olhos que te falem de mim
e onde as promessas dançam tangos de paixão.
Um dia, um dia…
Vou ensinar-te a percorrer os caminhos que levam ao meu colo
onde descansas a cabeça das intempéries da vida.
Passo a passo
gesto a gesto
carícia a carícia
quebras as barreiras e teces a teia dos desejos.
Um dia
vou surpreender-te e pôr a alma nua nos contornos do teu e do meu
corpo.
O desenho dela vai cantar-te baladas
e as tuas mãos dançarão nas curvas dos meus seios
ao afundar-se em mim como um cisne morrendo.
Um dia
tu vais olhar as minhas rendas pretas e desnudar-me os ombros.
Murmurarás palavras ciciadas, urdindo um feitiço enquanto o sol se
põe.
E inevitavelmente beberás dos meus lábios
a magia que te entardece os dias e inebria as noites.
Saio de madrugada ao teu encontro
a boca tremendo
o coração louco
a pele fervendo na espera do teu toque.
Um dia
vou contar-te este meu sonho.
Talvez quem sabe…um dia.


Facebooktwittermailby feather

Fernando Pessoa – “Um dia, no restaurante…”

15.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.

Impacientaram se comigo. Nunca se pode ter razão, nem num restaurante. Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta, E vim passear para toda a rua.

Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo…

(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele. E que a tristeza é de hoje).

Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.

Facebooktwittermailby feather

Natércia Freire – “Um dia”

10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Um dia partirei, muito cansada,
com as lembranças cingidas ao meu peito
e uma voz de saudade e de nortada.
 
(Levarei voz para gemer de espanto.
Levarei mãos para dizer adeus…
Olhos de espelho, e não olhos de pranto,
eu levarei. Os olhos serão meus?
 
Um dia partirei, talvez manhã.
Uma canção de amor virá das dunas.
 
De finas pernas, seguirei a margem
límpida, boa, enorme, no ribeiro
de água discreta a reflectir miragem,
braços de ramos, gestos de salgueiro.
 
Um dia partirei, muito diferente,
Enfim, aquela que jamais eu fora!
E os de cá hão-de achar que vou contente.

Facebooktwittermailby feather

António Franco Alexandre – “Um dia!

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Um dia abres os olhos e descobres
os inexactos corpos misturados
e ficas sem saber de que maneira
este estranho centauro nomear.
Já te espantou o lume, quando viste
uma língua no sonho da saliva,
e te riste, de ser tão branco o sangue
que nas beiras da noite adormecia.
Agora é o teu corpo que procura
na orla da floresta, uma fogueira
onde acordar as mãos de forma humana,
e resolver enfim, mas para sempre,
se ser o sacro emblema do horror
ou o primeiro verso de um poema.

Facebooktwittermailby feather