Nota biográfica

David de Jesus Mourão-Ferreira (24 de Fevereiro de 1927 — 16 de Junho de 1996) foi um escritor e poeta lisboeta licenciado em Filologia Românica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 1951, onde mais tarde, em 1957, foi professor, tendo-se destacado como um dos grandes poetas contemporâneos do Século XX.

“Outono”, poema de David Mourão-Ferreira.

24.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Mas quem diria ser Outono
se tu e eu estávamos lá?
(Tínhamos sono… Tanto sono!
É bom dormir ao deus-dará…)


E sobre o banco do jardim,
ante a cidade, o cais e o Tejo,
seria bom dormir assim,
ao deus-dará, como eu desejo…

Mas o teu seio é que não quis:
tremeu de mais sob o meu rosto…
Agora, nu, será feliz,
sob o afago do sol posto…

Seria Outono aquele dia,
nesse jardim, doce e tranquilo…?
Seria Outono…
Mas havia
todo o teu corpo a desmenti-lo.

David Mourão-Ferreira, in “A secreta viagem”,
Obra Poética, 5ª ed., Editorial Presença, 2006

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“Ladainha dos póstumos Natais” de David Mourão-Ferreira.

17.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

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“Libertação”, poema de David Mourão-Ferreira.

09.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Fui à praia, e vi nos limos
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.

Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
de repente uma suspeita.

Fui ao campo, e vi os ramos
decepados e torcidos:
ó meu amor, se ficamos,
pobres dos nossos sentidos.

Hão-de transformar o mar
deste amor numa lagoa:
e de lodo hão-de a cercar,
porque o mundo não perdoa.

Em tudo vejo fronteiras,
fronteiras ao nosso amor.
Longe daqui, onde queiras,
a vida será maior.

Nem as esperanças do céu
me conseguem demover
Este amor é teu e meu:
só na terra o queremos ter

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“Ilha”, poema de David Mourão-Ferreira.

27.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente

promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente

Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro

ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias

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“Soneto do Cativo” de David Mourão-Ferreira.

29.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encantamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!

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David Mourão-Ferreira – “Fado de Peniche”

27.09.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar

“Por teu livre pensamento
foram-te longe encerrar.
Tão longe que o meu lamento
não te consegue alcançar.
E apenas ouves o vento.
E apenas ouves o mar.

“Levaram-te, era já noite:
a treva tudo cobria.
Foi de noite, numa noite de
todas a mais sombria.
Foi de noite, foi de noite, e
nunca mais se fez dia.

“Ai dessa noite o veneno
persiste em me envenenar.
Ouço apenas o silêncio que
ficou em teu lugar.
Ao menos ouves o vento!
Ao menos ouves o mar!”

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David Mourão-Ferreira – “Grito”

10.04.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar

Cedros, abetos,
pinheiros novos.
O que há no tecto
do céu deserto,
além do grito?
Tudo que é nosso.

São os teus olhos
desmesurados,
lagos enormes,
mas concentrados
nos meus sentidos.
Tudo que é nosso
é excessivo.

E a minha boca,
de tão rasgada,
corre-te o corpo
de pólo a pólo,
desfaz-te o colo
de espádua a ‘spádua.
São os teus olhos.
Depois, o grito.
Cedros, abetos,
pinheiros novos.
É o regresso.
É no silêncio
do outro extremo
desta cidade
a tua casa.
É no teu quarto
de novo o grito.
E mais nocturna
do que nunca
a envergadura
das nossas asas.
Punhal de vento,
rosa de espuma:
morre o desejo,
nasce a ternura.
Mas que silêncio
na tua casa!

(Do livro “Música de Cama”, na Editorial Presença)

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David Mourão-Ferreira – “Curtas”

12.05.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar

ventre

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel

de mais que tua pele ser a pele da minha pele?

Cintilação de luas

assim que te desnudas

às escuras

Diante do teu ventre

como não dizer “sempre”

novamente.

Ó lâmina e bainha

de outra espada ainda

Tua língua

Ruge. Reprende. Arrasa

Desde que sempre o faças

com as asas

Vem dos arcanos de outro tempo

ou dos anéis de outra galáxia
esta espessura transparente

que só na cama as almas ganham

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David Mourão-Ferreira – “Sobre mim cavalgas…”

26.04.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar

sereia

Sobre mim cavalgas 

cingindo-me os flancos

Colhes à passagem
a luz do instante

De dentes cerrados

ondulas, avanças, 

retesas os braços,

comprimes as ancas.

Depois para a frente 

inclinas-te olhando
o que entre dois ventres 

ocorre entretanto,
e o próprio galope

em que vais lançada 

Que lua te empolga 

Que sol te embriaga

Lua e sol tu és 

enquanto cavalgas 

amazona e égua

de espora cravada
no centro do corpo 


Centauresa alada 

com os seios soltos 

como feitos de água.

Queria bebê-los 

quando mais te dobras 

Os cabelos esses 

sorvê-los agora

Mas de cada vez
que o rosto aproximas
já é outra a sede
que me queima a língua:
A de nos teus olhos 

tão perto dos meus
descobrir o modo

de beber o céu.

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David Mourão-Ferreira – “Respira Não Fales”

07.03.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar

nadegas

Entre as duas nádegas 

o pávido sulco
tem aroma de áfricas 

e de uvas de outubro

Dirias que fora 

um silvo de morte 

a penetrar toda
a nocturna flora
até hoje intacta
que ainda aí tinhas

Respira Não fales

Murmura Não grites

Que travo de amoras

Que túnel escuro
Que paz no que sofres 

por mais uns minutos

o pescoço vergas 
submissa e frágil

tal o de uma égua 
que vai beber água
mas encontra a lua 


E junto da cama
a rosa viúva
com lágrimas brancas
já pede a meus dedos 

sacudido apoio
para a viuvez
em que a deixo hoje

Muito mais a norte 

os queixumes calas
E nem gemes
Gozas 
enquanto te invade
o suco da vara 
vertido no sulco

Vê como foi fácil

Respira mais fundo

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David Mourão-Ferreira – “Fado para a lua de Lisboa”

23.03.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

fado13

Ó Lua, espelho do chão
que andas no céu pendurado,
holofote da ilusão
pelo turismo alugado,
não ilumines em vão
os sulcos do empedrado!

Denuncia nas valetas
as sombras que tu arrastas:
prostitutas, proxenetas,
silhuetas de pederastas…
Colos brancos. Rendas pretas.
Casas tortas. Pedras gastas.

As rugas do sobressalto,
Ó Lua não as destruas!
Tu viste carros de assalto
rondarem por estas ruas;
viste rolarem no asfalto
vestes mais alvas que as tuas.

Foste a lua a que se expunha
aos tiros a multidão;
espelhaste na tua unha
a secular aflição;
e já foste testemuha
dos fogos da Inquisição.

Procissões do Santo Ofício…
Fileiras de condenados…
À noite, nem só o vício
rasteja por estes lados:
as serpentes do suplício
silvam nos pátios murados…

Ó Lua, guarda o retrato
de tudo, tudo a que assistas!
Não queiras passar ao lado
da desgraça que visitas!
Nem queiras ser infamado
passatempo de turistas!

Clorofórmio dos enfermos,
se foges dos hospitais,
então recolhe-te aos ermos
desertos celestiais!
E quando te não merecermos
não te acendas nunca mais!

David Mourão-Ferreira, Obra Poética,
Lisboa, Editorial Presença, 1996, 2.ª ed.

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David Mourão-Ferreira – “Soneto do cativo”

10.03.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

cativo13

Se é sem dúvida Amor esta explosão
de tantas sensações contraditórias;
a sórdida mistura das memórias,
tão longe da verdade e da invenção;

o espelho deformante; a profusão
de frases insensatas, incensórias;
a cúmplice partilha nas histórias
do que os outros dirão ou não dirão;

se é sem dúvida Amor a cobardia
de buscar nos lençóis a mais sombria
razão de encaminhamento e de desprezo;

não há dúvida, Amor, que te não fujo
e que, por ti, tão cego, surdo e sujo,
tenho vivido eternamente preso!

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David Mourão-Ferreira – “Nocturno”

12.01.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

passos_de_mulher14

Eram, na rua, passos de mulher.
Era o meu coração que os soletrava.
Era, na jarra, além do malmequer,
espectral o espinho de uma rosa brava…

Era, no copo, além do gim, o gelo;
além do gelo, a roda de limão…
Era a mão de ninguém no meu cabelo.
Era a noite mais quente deste verão.

Era, no gira-discos, o Martírio
de São Sebastião, de Debussy…
Era, na jarra, de repente, um lírio!
Era a certeza de ficar sem ti.

Era o ladrar dos cães na vizinhança.
Era, na sombra, um choro de criança…

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David Mourão-Ferreira – “E por vezes”

24.05.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

E por vezes as noites duram meses E por
vezes os meses oceanos E por vezes os
braços que apertamos nunca mais são os
mesmos E por vezes

encontramos de nós em poucos meses o
que a noite nos fez em muitos anos E por
vezes fingimos que lembramos E por
vezes lembramos que por vezes

ao tomarmos o gosto aos oceanos só o
sarro das noites não dos meses lá no
fundo dos copos encontramos

E por vezes sorrimos ou choramos
E por vezes por vezes ah e por vezes
num segundo se evolam tantos anos

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David Mourão-Ferreira – “Penélope”

05.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Mais do que um sonho: comoção!
Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.

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David Mourão-Ferreira – “Que louro cabelo”

14.02.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

IV
Que louro o cabelo 

Tão ouro por dentro

Azuis olhos verdes
de mar de arvoredo

Ó branca e vermelha 

desde os tornozelos 

até às alturas
dos ombros da nuca

Nem saia nem manto 

Só te quero nua

Os teus e os meus dedos

do mesmo tamanho 

algemas trocando 

mais fortes que tudo

Ó branca no peito

vermelha na boca

Ó branca e vermelha 

na rosa do corpo

de rubra incendeias 

de branca me assombras

E branca e vermelha 

deitada a meu lado 

só nua desejas 

vibrar no retrato

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David Mourão-Ferreira – “Nádegas”

14.02.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Entre as duas nádegas

o pávido sulco
tem aroma de áfricas 

e de uvas de outubro

Dirias que fora

um silvo de morte 

a penetrar toda
a nocturna flora
até hoje intacta
que ainda aí tinhas


Respira Não fales

Murmura Não grites

Que travo
de amoras

Que túnel escuro
Que paz no que sofres

por mais uns minutos

o pescoço vergas 

submissa e frágil

tal o de uma
égua 
que vai beber
água
mas encontra a
lua 


E junto da cama
a rosa viúva
com lágrimas brancas
já pede os meus dedos

sacudido apoio
para a viuvez
em que a deixo hoje

Muito mais a
norte 
os queixumes
calas
E nem gemes Gozas

enquanto te invade
o suco da vara 

vertido no sulco

Vê como foi fácil

Respira mais
fundo

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David Mourão-Ferreira – “Pequenos poemas”

14.02.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quem foi que à tua pele conferiu esse papel

de mais que tua pele ser a pele da minha pele?

Cintilação de luas

assim que te desnudas

às escuras

Diante do teu ventre

como não dizer “sempre”

novamente.

Ó lâmina e bainha

de outra espada ainda

Tua língua

Ruge. Reprende. Arrasa

Desde que sempre o faças

com as asas

Vem dos arcanos de outro tempo

ou dos anéis de outra galáxia
esta espessura transparente

que só na cama as almas ganham

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David Mourão-Ferreira – “Sobre mim cavalgas…”

14.02.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sobre mim cavalgas

cingindo-me os flancos 

Colhes à passagem
a luz do instante

De dentes cerrados

ondulas, avanças, 

retesas os braços,

comprimes as ancas.

Depois para a
frente 

inclinas-te olhando
o que entre dois ventres

ocorre entretanto,
e o próprio galope

em que vais lançada

Que lua te empolga

Que sol te embriaga

Lua e sol tu és 

enquanto cavalgas 

amazona e égua 

de espora cravada
no centro do corpo 


Centauresa alada 

com os seios soltos

como feitos de água.

Queria bebê-los 

quando mais te dobras

Os cabelos esses 

sorvê-los agora

Mas de cada vez
que o rosto aproximas 

já é outra a sede
que me queima a língua:
A de nos teus olhos 

tão perto dos meus
descobrir o modo 

de beber o céu.

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David Mourão-Ferreira – “Prelúdio”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tudo principiava
pela cúmplice neblina
que vinha perfumada
de lenha e tangerinas
 
Só depois se rasgava
a primeira cortina
E dispersa e dourada
no palco das vitrinas
 
a festa começava
entre odor a resina
e gosto a noz-moscada
e vozes femininas
 
A cidade ficava
sob a luz vespertina
pelas montras cercada
de paisagens alpinas

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David Mourão-Ferreira – “Ternura”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

lencois

Desvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada …

Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio …

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente

que da nossa ternura anda sorrindo …
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!

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David Mourão-Ferreira – “Presídio”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nem todo o corpo é carne … Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tacto sempre pouco … ?

E o ventre, inconsistente como o lodo? …
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo …

É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio

vulto da Primavera em pleno Outono …
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!

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David Mourão-Ferreira – “Maria Lisboa”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

É varina, usa chinela, 

tem movimentos de gata. 

Na canastra, a caravela; 

no coração, a fragata.

Em vez de corvos,
no xaile 
gaivotas vêm pousar.
Quando o vento a leva ao baile,

baila no baile coo mar.

É de conchas o vestido; 

tem algas na cabeleira; 

e nas veias o latido
do motor de uma traineira.

Vende sonho e maresia, 

tempestades apregoa.
Seu nome próprio, Maria. 

Seu apelido, Lisboa.

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David Mourão-Ferreira – “Ladaínha horizontal”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

cama

Como se fossem jangadas
desmanteladas,
vogam no mar da memória
as camas da minha vida …
Tanta cama! Tanta história!
Tanta cama numa vida!
Grabatos, leitos, divãs,
a tarimba do quartel;
e no frio das manhãs
lívidas camas de hotel ..
Ei-las vogando as jangadas
desmanteladas,
todas cobertas de escamas
e do sal do mar da vida …
Tanta cama! Tantas camas!
Tanta cama numa vida!
Já os lençóis amarrados
tocam no centro da Terra
(que o reino dos desesperados
fica no centro da Terra!)
e os cobertores empilhados
são monte que não se alcança!
Só as tábuas das jangadas
desmanteladas
boiam no mar da lembrança
e no remorso da vida …
Homem sou. Já fui criança.
Tanta cama numa vida!
Nem vão ao fundo as de ferro,
nem ao céu as de dossel. ..
Lembro-vos, camas de ferro
de internato e de bordel,
gaiolas da adolescência,
ginásios do amor venal!
Barras fixas. Imprudência.
Sem rede, o salto mortal
pra fora da adolescência …
E confundem-se as jangadas
desmanteladas
no mar da reminiscência …
Onde estás, ó minha vida?
Sono. Volúpia. Doença.
Tanta cama numa vida!
E recordo-vos, tão vagas,
vós que viestes depois,
ó camas transfiguradas
das furtivas ligações!
Camas dos fins-de-semana,
beliches da beira-mar …
Oh! que arrojadas gincanas
sobre os altos espaldares!
E as camas das noites brancas,
tão brancas!, tão tumulares!
Cigarros. Beijos. Uísque.
Ó fragílimas jangadas,
desmanteladas … !
E nelas há quem se arrisque
sobre as pétalas da vida!
Cigarros. Beijos. Uísque.
Tanta cama numa vida!
E o amor? Tálamo, templo,
conjugação conjugal ..
O amor: tálamo, templo
– ilha num mar tropical.
Mas ao redor, insistentes,
bramam as ondas do mar,
do mar da memória ardente,
eternamente a bramar …
Já no frio dos lençóis
há prelúdios da mortalha;
e, nas camas, sugestões
fúnebres, torvas, pesadas …
– Sede, por fim, ó jangadas
desmanteladas,
a ponte do esquecimento
prà outra margem da Vida!
Sede flecha, monumento,
ponte aérea sobre o Tempo,
redentora madrugada!
Se o não fordes, sereis nada,
jangadas
desmanteladas,
todas roídas de escamas
da margem de cá da Vida …
Pobres camas! Tristes camas!
Tanta cama numa vida!

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David Mourão-Ferreira – “Casa”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão …

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.

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David Mourão-Ferreira – “Balada”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Depois do sangue misturado,
depois dos dentes, dos lamentos,
estamos deitados, lado a lado,
e desfolhamos sofrimentos.
Temos trint’anos, mais trezentos
de sofredora exaltação.
É este o cabo dos tormentos?
Ai, não e não! Ainda não.
Saboreamos o passado
por entre os beijos mais violentos
e mais subtis que temos dado.
E o monumento dos momentos
oscila, desde os fundamentos,
a tão febril consagração.
Mas estacamos, sonolentos.
Agora, não. Ainda não …
Tudo se torna esbranquiçado:
eram azuis, são já cinzentos
os horizontes do pecado …
Há nos teus ombros turbulentos
cintilações, pressentimentos …
Os nossos corpos descerão
para que abismos lamacentos?
Ah! não, e não! Ainda não!
Eis-vos, de novo, movimentos
que apunhalais a inquietação!
E assim unidos gritaremos
que não e não! que ainda não!

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David Mourão-Ferreira – “Natal”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Entremos, apressados, friorentos,
Numa gruta, no bojo de um navio,
Num presépio, num prédio, num presídio,
No prédio que amanhã for demolido…

Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
Porque esta noite chama se Dezembro,
Porque sofremos, porque temos frio.

Entremos, dois a dois: somos duzentos,
Duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
A cave, a gruta, o sulco de uma nave…

Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
Talvez seja Natal e não Dezembro,
Talvez universal a consoada.

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David Mourão-Ferreira – “Equinócio”

10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato
Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gim enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena
Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela
Acender o cachimbo para deixar no mundo uma herança de fumo
Rola mais um trovão
Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe

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