Nota biográfica

Cecília Benevides de Carvalho Meireles (Rio de Janeiro, 7 de novembro de 1901 — Rio de Janeiro, 9 de novembro de 1964) foi uma poetisa, pintora, professora e jornalista brasileira. É considerada uma das vozes líricas mais importantes das literaturas de língua portuguesa.

“Reinvenção”, poema de Cecília Meireles.

11.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

A vida só é possível

reinventada.



Anda o sol pelas campinas

e passeia a mão dourada

pelas águas, pelas folhas…

Ah! tudo bolhas

que vem de fundas piscinas

de ilusionismo… — mais nada.



Mas a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível

reinventada.



Vem a lua, vem, retira

as algemas dos meus braços.

Projeto-me por espaços

cheios da tua Figura.

Tudo mentira! Mentira

da lua, na noite escura.



Não te encontro, não te alcanço…

Só — no tempo equilibrada,

desprendo-me do balanço

que além do tempo me leva.

Só — na treva,

fico: recebida e dada.



Porque a vida, a vida, a vida,

a vida só é possível

reinventada.

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“Lua Adversa”, poema de Cecília Meireles.

22.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua…).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…

Cecília Meireles , in ‘Vaga Música’

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“Despedida” de Cecília Meireles.

01.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Por mim, e por vós, e por mais aquilo

que está onde as outras coisas nunca estão,

deixo o mar bravo e o céu tranquilo:

quero solidão.



Meu caminho é sem marcos nem paisagens.

E como o conheces? – me perguntarão.

– Por não ter palavras, por não ter imagens.

Nenhum inimigo e nenhum irmão.



Que procuras? – Tudo. Que desejas? – Nada.

Viajo sozinha com o meu coração.

Não ando perdida, mas desencontrada.

Levo o meu rumo na minha mão.



A memória voou da minha fronte.

Voou meu amor, minha imaginação…

Talvez eu morra antes do horizonte.

Memória, amor e o resto onde estarão?



Deixo aqui meu corpo, entre o sol e a terra.

(Beijo-te, corpo meu, todo desilusão!

Estandarte triste de uma estranha guerra…)



Quero solidão.

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Cecília Meireles – “Suavíssima”

10.04.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

bruma13

Os galos cantam, no crepúsculo dormente…
No céu de outono, anda um langor final de pluma
Que se desfaz por entre os dedos, vagamente…

Os galos cantam, no crepúsculo dormente…
Tudo se apaga, e se evapora, e perde, e esfuma…

Fica-se longe, quase morta, como ausente…
Sem ter certeza de ninguém… de coisa alguma…
Tem-se a impressão de estar bem doente, muito doente,

De um mal sem dor, que se não saiba nem resuma…
E os galos cantam, no crepúsculo dormente…

Os galos cantam, no crepúsculo dormente…
A alma das flores, suave e tácita, perfuma
A solitude nebulosa e irreal do ambiente…

Os galos cantam, no crepúsculo dormente…
Tão para lá!… No fim da tarde… além da bruma…

E silenciosos, como alguém que se acostuma
A caminhar sobre penumbras, mansamente,
Meus sonhos surgem, frágeis, leves como espuma…

Põem-se a tecer frases de amor, uma por uma…
E os galos cantam, no crepúsculo dormente…

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Cecília Meireles – “Motivo”

22.01.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

poeta13

Eu canto porque o instante existe e a
minha vida está completa. Não sou
alegre nem sou triste: sou poeta.

Irmão das coisas fugidias, não sinto
gozo nem tormento. Atravesso noites
e dias no vento.

Se desmorono ou se edifico, se
permaneço ou me desfaço,
– não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
– mais nada.

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Cecília Meireles – “Retrato de mulher triste”

21.10.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.

Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.

Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.

Cecília Meireles, in ‘Poemas (1942-1959)’

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Cecília Meireles – “A velhice pede desculpas”

21.10.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tão velho estou como árvore no inverno,
vulcão sufocado, pássaro sonolento.
Tão velho estou, de pálpebras baixas,
acostumado apenas ao som das músicas,
à forma das letras.

Fere-me a luz das lâmpadas, o grito frenético
dos provisórios dias do mundo:
Mas há um sol eterno, eterno e brando
e uma voz que não me canso, muito longe, de ouvir.

Desculpai-me esta face, que se fez resignada:
já não é a minha, mas a do tempo,
com seus muitos episódios.

Desculpai-me não ser bem eu:
mas um fantasma de tudo.
Recebereis em mim muitos mil anos, é certo,
com suas sombras, porém, suas intermináveis sombras.

Desculpai-me viver ainda:
que os destroços, mesmo os da maior glória,
são na verdade só destroços, destroços.

Cecília Meireles, in ‘Poemas (1958)’

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Cecília Meireles – “Primavera”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la. A inclinação do sol vai marcando outras sombras; e os habitantes da mata, essas criaturas naturais que ainda circulam pelo ar e pelo chão, começam a preparar sua vida para a primavera que chega.
Finos clarins que não ouvimos devem soar por dentro da terra, nesse mundo confidencial das raízes, — e arautos sutis acordarão as cores e os perfumes e a alegria de nascer, no espírito das flores.

Há bosques de rododendros que eram verdes e já estão todos cor-de-rosa, como os palácios de Jeipur. Vozes novas de passarinhos começam a ensaiar as árias tradicionais de sua nação. Pequenas borboletas brancas e amarelas apressam-se pelos ares, — e certamente conversam: mas tão baixinho que não se entende.
Oh! Primaveras distantes, depois do branco e deserto inverno, quando as amendoeiras inauguram suas flores, alegremente, e todos os olhos procuram pelo céu o primeiro raio de sol.

Esta é uma primavera diferente, com as matas intactas, as árvores cobertas de folhas, — e só os poetas, entre os humanos, sabem que uma Deusa chega, coroada de flores, com vestidos bordados de flores, com os braços carregados de flores, e vem dançar neste mundo cálido, de incessante luz.
Mas é certo que a primavera chega. É certo que a vida não se esquece, e a terra maternalmente se enfeita para as festas da sua perpetuação.
Algum dia, talvez, nada mais vai ser assim. Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu. E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.

Enquanto há primavera, esta primavera natural, prestemos atenção ao sussurro dos passarinhos novos, que dão beijinhos para o ar azul. Escutemos estas vozes que andam nas árvores, caminhemos por estas estradas que ainda conservam seus sentimentos antigos: lentamente estão sendo tecidos os manacás roxos e brancos; e a eufórbia se vai tornando pulquérrima, em cada coroa vermelha que desdobra. Os casulos brancos das gardênias ainda estão sendo enrolados em redor do perfume. E flores agrestes acordam com suas roupas de chita multicor.
Tudo isto para brilhar um instante, apenas, para ser lançado ao vento, — por fidelidade à obscura semente, ao que vem, na rotação da eternidade. Saudemos a primavera, dona da vida — e efêmera

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Cecília Meireles – “Velhice”

07.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Como se morre de velhice
ou de acidente ou de doença,
morro, Senhor, de indiferença.

Da indiferença deste mundo
onde o que se sente e se pensa
não tem eco, na ausência imensa.

Na ausência, areia movediça
onde se escreve igual sentença
para o que é vencido e o que vença.

Salva-me, Senhor, do horizonte
sem estímulo ou recompensa
onde o amor equivale à ofensa.

De boca amarga e de alma triste
sinto a minha própria presença
num céu de loucura suspensa.

(Já não se morre de velhice
nem de acidente nem de doença,
mas, Senhor, só de indiferença.)

Cecília Meireles, in ‘Poemas (1957)’

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