Nota biográfica

Carlos de Oliveira (Belém do Pará, 10 de agosto de 1921 — Lisboa, 1 de julho de 1981) foi um escritor português.

“Acusam-me de Mágoa e Desalento” poema de Carlos de Oliveira

17.09.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

Carlos de Oliveira, in ‘Mãe Pobre’

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Carlos de Oliveira – Leitura”

05.03.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quando por fim as árvores
se tornam luminosas; e ardem
por dentro pressentindo;
folha a folha; as chamas
ávidas de frio:
nimbos e cúmulos coroam
a tarde, o horizonte,
com a sua auréola incandescente
de gás sobre os rebanhos.

Assim se movem
as nuvens comovidas
no anoitecer
dos grandes textos clássicos.

Perdem mais densidade;
ascendem na pálida aleluia
de que fulgor ainda?
e são agora
cumes de colinas rarefeitas
policopiando à pressa
a demora das outras
feita de peso e sombra.

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Carlos de Oliveira – “Vento”

04.03.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

vento13

As palavras
cintilam
na floresta do sono
e o seu rumor
de corças perseguidas
ágil e esquivo
como o vento
fala de amor
e solidão
quem vos ferir
não fere em vão,
palavras.

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Carlos de Oliveira – Look back in anger”

28.11.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

guerra

Podia ser a névoa habitual da noite, os charcos cintilantes, o luar trazido por um golpe de vento às trincheiras da Flandres, mas não era. Quando acordou mais tarde num hospital da retaguarda, ensinaram-no a respirar de novo. Lentas infiltrações de oxigénio num granito poroso, durante anos e anos, até à imobilidade pulmonar das estátuas.
Hoje, um dos seus filhos sobe ao terraço mais obscuro da cidade em que vive e olha o passado com rancor. O sangue bate, gota a gota, na pedra hereditária dos brônquios e ele sabe que é o mar contra os rochedos, a pulsação difícil das algas ou dos soldados mortos nessa noite da Flandres.
As imagens latentes, penso eu, porque sou eu o homem na armadilha do terraço difuso, entrego-as às palavras como se entrega um filme aos sais da prata. Quer dizer: numa pura suspensão de cristais, revelo a minha vida.

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Carlos de Oliveira – “Insónia”

07.07.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Penso que sonho. Se é dia, a luz não chega para alumiar o caminho pedregoso; se é noite, as estrelas derramam uma claridade desabituai.
Caminhamos e parece tudo morto: o tempo, ou se cansou já desta longa caminhada e adormeceu, ou morreu também. Esqueci a fisionomia familiar da paisagem e apenas vejo um trémulo ondular de deserto, a silhueta carnuda e torcida dos cactos, as pedras ásperas da estrada.
Chove? Qualquer coisa como isso. E caminhando sempre, há em redor de nós a terra cheia de silêncio.
Será da própria condição das coisas serem silenciosas agora?

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Carlos de Oliveira – “Acusam-me…”

03.06.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Acusam-me de mágoa e desalento,
como se toda a pena dos meus versos
não fosse carne vossa, homens dispersos,
e a minha dor a tua, pensamento.

Hei-de cantar-vos a beleza um dia,
quando a luz que não nego abrir o escuro
da noite que nos cerca como um muro,
e chegares a teus reinos, alegria.

Entretanto, deixai que me não cale:
até que o muro fenda, a treva estale,
seja a tristeza o vinho da vingança.

A minha voz de morte é a voz da luta:
se quem confia a própria dor perscruta,
maior glória tem em ter esperança.

(in ‘Mãe Pobre’)

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Carlos de Oliveira – “Tempo”

09.12.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

O tempo é um velho corvo
de olhos turvos, cinzentos.
Bebe a luz destes dias só dum sorvo
como as corujas o azeite
dos lampadários bentos.

E nós sorrimos,
pássaros mortos
no fundo dum paul
dormimos.

Só lá do alto do poleiro azul
o sol doirado e verde,
o fulvo papagaio
(estou bêbedo de luz,
caio ou não caio?)
nos lembra a dor do tempo que se perde.

Carlos de Oliveira, in “Colheita Perdida”

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Carlos de Oliveira – “Dentes”

09.12.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Os dentes, porque são dentes,
iniciais. Na espuma,
porque não são saliva
estas ondas
pouco mordentes; este
sal que sobe quase
doce; donde?

Numa espécie
de fogo: amor é fogo
que arde sem se ver;
porque não é
de facto fogo este frio aceso;
da saliva à lava
passa pela espuma.

Só os dentes.
Duros, ácidos, concentram-se
tacteando a pele,
tatuando signos sempre
moventes
de fúria. Mordida
a pele cintila; espelho
dos dentes, do seu esmalte voraz;
suavemente.

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Carlos de Oliveira – “Sonetos do regresso 1”

09.12.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Volto contigo à terra da ilusão,
mas o lar de meus pais levou-o o vento
e se levou a pedra dos umbrais
o resto é esquecimento:

procurar o amor neste deserto
onde tudo me ensina a viver só
e a água do teu nome se desfaz
em sílabas de pó

é procurar a morte apenas,
o perfume daquelas
longínquas açucenas

abertas sobre o mundo como estrelas:
despenhar no meu sono de criança
inutilmente a chuva da lembrança.

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Carlos de Oliveira – “Carta a Ângela”

09.12.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

guerra

Para ti, meu amor, é cada sonho
de todas as palavras que escrever,
cada imagem de luz e de futuro,
cada dia dos dias que viver.

Os abismos das coisas, quem os nega,
se em nós abertos inda em nós persistem?
Quantas vezes os versos que te dou
na água dos teus olhos é que existem!

Quantas vezes chorando te alcancei
e em lágrimas de sombra nos perdemos!
As mesmas que contigo regressei
ao ritmo da vida que escolhemos!

Mais humana da terra dos caminhos
e mais certa, dos erros cometidos,
foste de novo, e sempre, a mão da esperança
nos meus versos errantes e perdidos.

Transpondo os versos vieste à minha vida
e um rio abriu-se onde era areia e dor.
Porque chegaste à hora prometida
aqui te deixo tudo, meu amor!

Carlos de Oliveira, in “Poesias

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Carlos de Oliveira – “O fundo das águas”

09.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Adensam-se as formas vagas, surdindo tumultuariamente de não
sei quê desesperado ainda como o mundo dos princípios; adensam-
-se os elementos, os vendavais, a aspereza do ferro, do cálcio, da lava,
a fereza biológica dum fundo que não tem outro destino senão
explodir.
Estou a sentir na sombra: um rumor de larvas e sementes, o
amor de que sou capaz pela vida e pelos outros; o esboçar dalguma
flor negra acordando, ao ritmo dos versos; caprichos da botânica ou
desvios da alma; o vento da harmonia submerso entre caules sanguí-
neos e rugosos; a breve tempestade das conchas e dos peixes, a grande solidariedade que vos devo.
O que me espanta é a aceitação de cada dia. E desta angústia
vou tecendo as palavras, desta água salgada e doce como as lágrimas
e o sangue. Tecendo escuramente as palavras.

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