Nota biográfica

António Lobo Antunes (Lisboa, 1 de Setembro de 1942) é um escritor e psiquiatra português. Entre 1971 e 1973 viveu em Angola, onde participou, como tenente médico do Exército, na Guerra do Ultramar. Posteriormente exerceu a profissão no Hospital Miguel Bombarda, em Lisboa, até 1985. Em 1979 publicou os primeiros livros, Memória de Elefante e Os Cus de Judas, que obtiveram grande êxito

António Lobo Antunes – “O bolero do coronel” (Sem música)

04.09.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

prostituta14

Eu que me comovo

Por tudo e por nada

Deixei-te parada

Na berma da estrada

Usei o teu corpo

Paguei o teu preço

Esqueci o teu nome

Limpei-me com o lenço

Olhei-te a cintura

De pé no alcatrão

Levantei-te as saias

Deitei-te no banco

Num bosque de faias

De mala na mão

Nem sequer falaste

Nem sequer beijaste

Nem sequer gemeste,

Mordeste, abraçaste

Quinhentos escudos

Foi o que disseste

Tinhas quinze anos

Dezasseis, dezassete

Cheiravas a mato

À sopa dos pobres

A infância sem quarto


A suor, a chiclete

Saíste do carro

Alisando a blusa

Espiei da janela

Rosto de aguarela

Coxa em semifusa

Soltei o travão

Voltei para casa

De chaves na mão

Sobrancelha em asa

Disse: fiz serão

Ao filho e à mulher

Repeti a fruta

Acabei a ceia

Larguei o talher

Estendi-me na cama

De ouvido à escuta
E perna cruzada

Que de olhos em chama

Só tinha na ideia

Teu corpo parado

Na berma da estrada

Eu que me comovo

Por tudo e por nada

Facebooktwittermailby feather

António Lobo Antunes – “Bolero do coronel sensível que fez amor em Monsanto”

08.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

puta13

Eu que me comovo
Por tudo e por nada
Deixei-te parada
Na berma da estrada
Usei o teu corpo
Paguei o teu preço
Esqueci o teu nome
Limpei-me com o lenço
Olhei-te a cintura
De pé no alcatrão
Levantei-te as saias
Deitei-te no banco
Num bosque de faias
De mala na mão
Nem sequer falaste
Nem sequer beijaste
Nem sequer gemeste,
Mordeste, abraçaste
Quinhentos escudos
Foi o que disseste
Tinhas quinze anos
Dezasseis, dezassete
Cheiravas a mato
À sopa dos pobres
A infância sem quarto
A suor, a chiclete
Saíste do carro
Alisando a blusa
Espiei da janela
Rosto de aguarela
Coxa em semifusa
Soltei o travão
Voltei para casa
De chaves na mão
Sobrancelha em asa
Disse: fiz serão
Ao filho e à mulher
Repeti a fruta
Acabei a ceia
Larguei o talher
Estendi-me na cama
De ouvido à escuta
E perna cruzada
Que de olhos em chama
Só tinha na ideia
Teu corpo parado
Na berma da estrada
Eu que me comovo
Por tudo e por nada

Facebooktwittermailby feather

António Lobo Antunes – “Homens quando estão com gripe”

08.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Pachos na testa, terço na mão,
Uma botija, chá de limão,
Zaragatoas, vinho com mel,
Três aspirinas,. creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher.
Ai Lurdes que vou morrer.
Mede me a febre, olha me a goela,
Cala os miúdos, fecha a janela,
Não quero canja, nem a salada,
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada.
Se tu sonhasses como me sinto,
Já vejo a morte nunca te minto,
Já vejo o inferno, chamas, diabos,
anjos estranhos, cornos e rabos,
Vejo demónios nas suas danças
Tigres sem listras, bodes sem tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes fica comigo
Não é o pingo de uma torneira,
Põe me a Santinha à cabeceira,
Compõe me a colcha,
Fala ao prior,
Pousa o Jesus no cobertor.
Chama o Doutor, passa a chamada,
Ai Lurdes, Lurdes nem dás por nada.
Faz-me tisasna e pão de ló,
Não te levantes que fico só,
Aqui sózinho a apodrecer,
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.

Facebooktwittermailby feather

António Lobo Antunes – “Pescador da Marginal”

08.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

o melhor da minha vida
é estar aqui na muralha
com uma cana estendida
para o negrume do rio
as vigias de um navio
e as ondas de fina talha.

Quando chega sexta-feira
despeço-me da mulher
beijo a criança na esteira
ponho um capuz de oleado’
e venho para este lado
no barquinho da carreira.

Vejo as luzes de Belém
reflectidas no alcatrão
milagres que a noite tem
namorados que se beijam
altas árvores que bocejam
e o búzio que as casas são.

Ó minha colcha de estrelas
neste mar cor de basalto
minhas loiras caravelas
navios de especiarias
vogando em ondas macias
num céu tão puro e tão alto.

Saltam infantes barbudos
das naus que vêm de Almada
grumetes frades miúdos
com gengivas de escorbuto
donzelas de triste luto
dançam na luz irisada.

Salta el-rei com seus alões
e as aias da princesa
bobos jograis e anões
escrivães e cardeais
saltam santas de vitrais
e o cronista à sua mesa.

D. João chegou de Diu
D. Pedro de Timor vem
e eu na muralha do rio
a ver os dois enforcados
que os corvos comem em estrados
junto à Torre de Belém.

Convosco esqueço o emprego
quando chega sexta-feira
fico surdo fico cego
não ligo à renda de casa
parado a ouvir uma asa
que me voa à cabeceira.

Meu rio tão negro e tão fundo
bacia do mar da Palha
quero lá saber do mundo
quero lá saber do peixe
quem me ama que me deixe
ficar aqui na muralha.

Facebooktwittermailby feather