Nota biográfica

Adília Lopes, pseudónimo literário de Maria José da Silva Viana Fidalgo de Oliveira, (Lisboa, 20 de Abril de 1960) é uma poetisa, cronista e tradutora portuguesa. Filha de uma bióloga assistente de Botânica na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e de um professor do ensino secundário, Adília Lopes cursou Física na Universidade de Lisboa, licenciatura que abandonou, quase completa, devido a uma psicose esquizo-afectiva, doença da qual sempre falou abertamente, fosse na sua poesia, crónicas, conferências ou entrevistas a meios de comunicação social.

“Não gosto tanto de livros”, poema de Adília Lopes.

19.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

NÃO GOSTO tanto 

como Mallarmé

parece que gostava

eu não sou um livro

e quando me dizem

gosto muito dos seus livros

gostava de poder dizer

como o poeta Cesariny

olha

eu gostava
é que tu gostasses de mim

os livros não são feitos

de carne e osso

e quando tenho

vontade de chorar

abrir um livro

não me chega

preciso de um abraço

mas graças a Deus

o mundo não é um livro

e o acaso não existe

no entanto gosto muito

de livros 
e acredito na Ressurreição

de livro e acredito que no Céu

haja bibliotecas

e se possa ler e escrever

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“Arte Poética” de Adília Lopes

13.05.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Escrever um poema,
é como apanhar um peixe,
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe,
mas posso falar assim!
sei que nem tudo o que vem às mãos,
é peixel
o peixe debate-se,
tenta escapar-se
escapa-se,
eu persisto,
luto corpo a corpo,
com o peixel
ou morremos os dois,
ou nos salvamos os dois |
tenho de estar atental
tenho medo de não chegar ao fiml
é uma questão de vida ou de mortel
quando chego ao fim,
descubro que precisei de apanhar o peixe,
para me livrar do peixel
livro-me do peixe com o alívio,
que não sei dizer

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“Arte Poética”, poema de Adília Lopes.

01.03.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar

Escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer

Adília Lopes, in ‘Um Jogo Bastante Perigoso’

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Adília Lopes – “Meteorológica” (para o José Bernardino)

06.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Deus não me deu
um namorado
deu-me
o martírio branco
de não o ter
Vi namorados
possíveis
foram bois
foram porcos
e eu palácios
e pérolas
Não me queres
nunca me quiseste
(porquê, meu Deus?)
A vida
é livro
e o livro
não é livre
Choro
chove
mas isto é
Verlaine
Ou:
um dia
tão bonito
e eu
não fornico

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Adília Lopes – “Memórias das infâncias.”

06.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Gostávamos muito de doce de framboesa
E deram-nos um prato com mais doce de framboesa
Do que era costume
Mas
A nossa criada a nossa tia-avó no doce de framboesa
Para nosso bem
Porque estávamos doentes
Esconderam colheres do remédio
Que sabia mal
O doce de framboesa não sabia à mesma coisa
E tinha fiapos brancos
Isso aconteceu-nos uma vez e chegou
Nunca mais demos pulos por ir haver
Doce de framboesa à sobremesa
Nunca mais demos pulos nenhuns
não podemos dizer
Como o remédio da nossa infância sabia mal!
Como era doce o doce de framboesa da nossa infância!
Ao descobrir a mistura
Do doce de framboesa com o remédio
ficámos calados
Depois ouvimos falar da entropia
Aprendemos que não se separa de graça
O doce de framboesa do remédio misturados
é assim nos livros
é assim nas infâncias
E os livros são como as infâncias
Que são como as pombinhas da Catrina
Uma é minha
Outra é tua
Outra é de outra pessoa

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Adília Lopes – “Três poemas.”

06.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não sou
menos
que Einstein
nem que
Claudia Schiffer
não sou
mais
que uma osga
ou que uma barata
não sou mais
inteligente
que um mongolóide
tenho um Q. I.
no limite
superior
da média
todos diferentes
todos iguais
incluo também
os animais
o que nos separa
dos animais
é o pecado original
não é o reconhecimento
no espelho nem o complexo
de Édipo

*

Portugueses:
gente ousada
gente usada
Brandos usos:
abusos grandes
e pequenos

*

Fariseias
Gostam de ser cumprimentadas
nas praças
e de ter o primeiro lugar
à mesa dos banquetes
são calculistas
formigas carreiristas
cheias de sucesso
e tudo usam e tudo gastam
indistintamente
porque são altas as suas entropias
e depois não sabem dar
os bons-dias às mulheres-a-dias

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Adília Lopes – “A sereia das pernas tortas.”

06.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Era uma vez uma mulher que tão depressa era feia como era bonita.
Quando era bonita, as pessoas diziam-lhe:
— Eu amo-te.
E iam com ela para a cama e para a mesa.
Quando era feia, as mesmas pessoas diziam-lhe:
— Não gosto de ti.
E atiravam-lhe com caroços de azeitona à cabeça.
A mulher pediu a Deus:
— Faz-me bonita ou feia de uma vez por todas e para sempre.
Então Deus fê-la feia.
A mulher chorou muito porque estava sempre a apanhar com caroços de azeitona e a ouvir coisas feias. Só os animais gostavam sempre dela, tanto quando era bonita como quando era feia como agora que era sempre feia. Mas o amor dos animais não lhe chegava. Por isso deitou-se a um poço. No poço, estava um peixe que comeu a mulher de um trago só, sem a mastigar.
Logo a seguir, passou pelo poço o criado do rei, que pescou o peixe.
Na cozinha do palácio, as criadas, a arranjarem o peixe, descobriram a mulher dentro do peixe. Como o peixe comeu a mulher mal a mulher se matou e o criado pescou o peixe mal o peixe comeu a mulher e as criadas abriram o peixe mal o peixe foi pescado pelo criado, a mulher não morreu e o peixe morreu.
As criadas e o rei eram muito bonitos. E a mulher ali era tão feia que não era feia. Por isso, quando as criadas foram chamar o rei e o rei entrou na cozinha e viu a mulher, o rei apaixonou-se pela mulher.
— Será uma sereia? — perguntaram em coro as criadas ao rei.
— Não, não é uma sereia porque tem duas pernas, muito tortas, uma mais curta do que a outra — respondeu o rei às criadas.
E o rei convidou a mulher para jantar.
Ao jantar, o rei e a mulher comeram o peixe. O rei disse à mulher quando as criadas se foram embora:
— Eu amo-te.
Quando o rei disse isto, sorriu à mulher e atirou-lhe com uma azeitona inteira à cabeça. A mulher apanhou a azeitona e comeu-a. Mas, antes de comer a azeitona, a mulher disse ao rei:
— Eu amo-te.
Depois comeu a azeitona. E casaram-se logo a seguir no tapete de Arraiolos da casa de jantar.

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Adília Lopes – “Masturbação”

06.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

secrisina13

Só depois de ler
Barthes
é que Camila
Ficou a saber
Que o dedo da masturbação
é o médio
até aí tinha usado
Sempre
O indicador
Experimentou também
O polegar
E viu que todos serviam
Meu menino
Seu vizinho
Pai de todos
Fura bolos
Mata piolhos
Depois de perder a virgindade
Experimentou
Com um tubo de Cecrisina
Metido num Durex Gossamer
também servia
Mas isto nada
Tem a ver com o amor
Tem a ver com o escrever
E com o pintar
E dá menos satisfação
A menos que Camila
Se lembre de Jénia
E da penetração
então usa
só os dedos
E serve
Para adormecer

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