Nota biográfica

Francisco José Tenreiro, foi um geógrafo e poeta são-tomense. Foi docente no Instituto de Ciências Sociais e Política Ultramarina, atual Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa. (Wikipédia)

Francisco José Tenreiro – “Romance de Sinhá Carlota”

19.02.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar

cachimbo

Na beira do caminho
sinhá Carlota
está pitando no seu cachimbo.

Um círculo de cuspo
a seu lado…

Veio do Sul
numa leva de contratados.
Teve filhos negros
que trocam hoje peixe
por cachaça.
Teve filhos mestiços.
Uns
forros de a.b.c.
perdidos em rixas de navalhas.

Outros foram ao norte
com seus pais brancos
e o seu coração
já não lembra o rostinho deles!

Sinhá Carlota
veio há muito do sul
numa leva de contratados…

Assim
embora pra seu branco
o seu corpo não baile mais no socopé
ele ao passar
fica sempre dizendo:
sábuá?

Sinhá Carlota
nos olhos cansados e vermelhos
solta um achô distante
enquanto vai pitando
no seu cachimbo carcomido…

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Tomaz Medeiros – “Meu canto Europa”

12.02.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar

europa

Agora,
agora que todos os contactos estão feitos
as linhas dos telefones sintonizadas,
os espaços dos morses ensurdecidos,
os mares dos barcos violados,
os lábios dos risos esfrangalhados,
os filhos incógnitos germinados,
os frutos do solo encarcerados,
os músculos definhados
e o símbolo da escravidão determinado.

Agora,
agora que todos os contactos estão feitos,
com a coreografia do meu sangue coagulada,
o ritmo do meu tambor silenciado,
os fios do meu cabelo embranquecidos,
meu coito denunciado e o esperma esterilizado,
meus filhos de fome engravidados,
minha ânsia e meu querer amordaçados,
minhas estátuas de heróis dinamitadas,
meu grito de paz com os chicotes abafado,
meus passos guiados como passos de besta,
e o raciocínio embotado e manietado,

Agora,
agora que me estampaste no rosto
os primores da tua civilização,
eu te pergunto, Europa,
eu te pergunto: AGORA?

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Tomaz Medeiros – “O Novo Canto da Mãe”

01.02.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar

nezo
(Pintura de Nèzó)

Mãe:
Nós somos os teus filhos
Que sem vergonha
Quebraram as fronteiras do silêncio.
Os filhos sem manhãs
Que rasgaram as noites que cobriam
As carnes das tuas carnes.

Nós somos, Mãezinha,
os teus filhos,
Os pés descalços,
Esfomeados,
Os meninos das roças,
Do cais,
Os capitães d’areia,
Os meninos negros à margem da vida,
Que desperdiçaram o destino do teu ventre,
Que endireitaram os instantes
Que marcaram socalcos na terra firme,
Na profundidade das trevas da tua vida.
Nós somos, Mãezinha, os teus filhos,
Sexos que germinaram vida,

Forças que desfloraram a virgindade dos dogmas,
Fecundaram minérios de esperança,
Olhos, dinamites de amor,
Mãos que esfacelaram a espessura dos obós,
E em cujo silêncio verde
Germina a Certeza:

Mãezinha:
Nós somos os teus filhos.

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Alda Espírito Santo – “Lá no Água Grande”

27.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar

alex_keller_fonseca
(Pintura de Alex Keller-Fonseca)

Lá no «Água Grande» a caminho da roça
negritas batem que batem co’a roupa na pedra.
Batem e cantam modinhas da terra.

Cantam e riem em riso de mofa
histórias contadas, arrastadas pelo vento.

Riem alto de rijo, com a roupa na pedra
e põem de branco a roupa lavada.

As crianças brincam e a água canta.
Brincam na água felizes…
Velam no capim um negrito pequenino.

E os gemidos cantados das negritas lá do rio
ficam mudos lá na hora do regresso…
Jazem quedos no regresso para a roça.

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