Nota biográfica

Edson Bueno de Camargo nasceu em Santo André-São Paulo, Brasil, em 24 de julho de 1962, e mora em Mauá–SP. Publicou vários livros, entre eles “cabalísticos” (Editora Multifoco, 2010) e “De Lembranças & Fórmulas Mágicas” (Edições Tigre Azul/ FAC Mauá, 2007).

Edson Bueno de Camargo – “Gelo entre os dedos”

23.09.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

aqui enterrei meus mortos
nesta cidade de telhas claras
e a linha o céu não se define no cinza
onde o oco da terra abriga
coleções de esqueletos brancos

ali plantei uma árvore de carne
(em homenagem ao pai mais antigo que o outro)
que serviu de suporte a meus ossos parcos
e nela jaz enforcado um cão ainda em agonia
todo o sangue obliquo de crianças vingadas
e cabelos de cascatas de cometas

há um grito surdo de mortes precoces
inocências imoladas em campos de batalha
aqueles que carregam pedras de gelo entre os dedos
e uma agonia antiga e intacta entre os dentes

um barril repleto de braços amputados, mãos
e orelhas e narizes decepados a facão
ampulhetas de linfa coagulada e reduzida a pó
pedras de peixe ( fortuna escondida no porão)
retratos de lordes emoldurados com pele humana.

há um urro indolente de tesouras de aço enferrujado
prata e ouro enredados em fina tapeçaria
um coro de choros incontroláveis de mães em praça pública
em cidades sitiadas
em muros de vergonha
e campos sem cultivo
que na falta de justiça se referem a vingança com graça e apreço
há um rio que corre destes olhos
água agourenta e salgada
que devora como ácido
toda a alegria e esperança

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Ruy Cinatti – “Quando eu partir…” (sem música)

01.08.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quando eu partir, quando eu partir de novo,
A alma e o corpo unidos,
Num último e derradeiro esforço de criação;
Quando eu partir…
Como se um outro ser nascesse
De uma crisálida prestes a morrer sobre um muro estéril,
E sem que o milagre lhe abrisse
As janelas da vida…
Então pertencer-me-ei.
Na minha solidão, as minhas lágrimas
Hão-de ter o gosto dos horizontes sonhados na adolescência,
E eu serei o senhor da minha própria liberdade.
Nada ficará no lugar que eu ocupei.
O último adeus virá daquelas mãos abertas
Que hão-de abençoar um mundo renegado
No silêncio de uma noite em que um navio
Me levar para sempre
Mas ali
Hei-de habitar no coração de certos que me amaram;
Ali hei-de ser eu como eles próprios me sonharam;
Irremediavelmente…
Para sempre.

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Antero de Quental – “O que Diz a Morte”

06.05.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Deixai-os vir a mim, os que lidaram;
Deixai-os vir a mim, os que padecem;
E os que cheios de mágoa e tédio encaram
As próprias obras vãs, de que escarnecem…

Em mim, os Sofrimentos que não saram,
Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem.
As torrentes da Dor, que nunca param,
Como num mar, em mim desaparecem. –

Assim a Morte diz. Verbo velado,
Silencioso intérprete sagrado
Das cousas invisíveis, muda e fria,

É, na sua mudez, mais retumbante
Que o clamoroso mar; mais rutilante,
Na sua noite, do que a luz do dia.

Antero de Quental, in “Sonetos”

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Carlos de Oliveira – “Dentes”

09.12.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Os dentes, porque são dentes,
iniciais. Na espuma,
porque não são saliva
estas ondas
pouco mordentes; este
sal que sobe quase
doce; donde?

Numa espécie
de fogo: amor é fogo
que arde sem se ver;
porque não é
de facto fogo este frio aceso;
da saliva à lava
passa pela espuma.

Só os dentes.
Duros, ácidos, concentram-se
tacteando a pele,
tatuando signos sempre
moventes
de fúria. Mordida
a pele cintila; espelho
dos dentes, do seu esmalte voraz;
suavemente.

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Guerra Junqueiro – “A moleirinha”

19.09.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Pela estrada plana, toque, toque, toque, 

Guia o jumentinho uma velhinha errante.

Como vão ligeiros, ambos a reboque, Antes 

que anoiteça, toque, toque, toque, A 

velhinha atrás, o jumentito adiante!…

Toque, toque, a velha vai para o moinho, 

Tem oitenta anos, bem bonito rol!… E 

contudo alegre como um passarinho, Toque, 

toque, e fresca como o branco linho, De 

manhã nas relvas a corar ao sol.

Vai sem cabeçada, em liberdade franca, O 

jerico ruço duma linda cor; Nunca foi
ferrado, nunca usou retranca, Tange-o, 

toque, toque, a moleirinha branca Com o

galho verde duma giesta em flor.

Vendo esta velhita, encarquilhada e benta, 

Toque, toque, toque, que recordação! Minha

avó ceguinha se me representa… Tinha eu 

seis anos, tinha ela oitenta, Quem me fez o 

berço fez-lhe o seu caixão!…

Toque, toque, toque, lindo burriquito, Para

as minhas filhas quem mo dera a mim! Nada

mais gracioso, nada mais bonito! Quando a 

virgem pura foi para o Egipto, Com certeza 

ia num burrico assim.

Toque, toque, é tarde, moleirinha santa!

Nascem as estrelas, vivas em cardume…

Toque, toque, toque, e quando o galo canta, 

Logo a moleirinha, toque, se levanta, Pra 

vestir os netos, pra acender o lume…

Toque, toque, toque, como se espaneja, Lindo 

jumentinho pela estrada chã! Tão ingénuo e

humilde, dá-me, salvo seja, Dá-me até vontade 

de o levar à igreja, Baptizar-lhe alma, prà 

fazer cristã!

Toque, toque, toque, e a moleirinha antiga, 

Toda, toda branca, vai numa frescata… Foi 

enfarinhada, sorridente amiga, Pela mó da 

azenha com farinha triga, Pelos anjos loiros 

com luar de prata!…

Toque, toque, como o burriquito avança! Que

prazer doutrora para os olhos meus! Minha 

avó contou-me quando fui criança, Que era

assim tal qual a jumentinha mansa Que adorou

nas palhas o menino Deus…

Toque, toque, é noite… ouvem-se ao longe os sinos,

Moleirinha branca, branca de luar!… Toque, toque,

e os astros abrem diamantinos, Como 

estremunhados querubins divinos, Os olhitos

meigos para a ver passar…

Toque, toque, e vendo sideral tesoiro, Ente 

os milhões d’astros o luar sem véu, O 

burrico pensa: Quanto milho loiro! Quem 

será que mói estas farinhas d’oiro Com a 

mó de jaspe que anda além no Céu!

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Nuno Rebocho – “Tu procuras…!”

23.08.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tu procuras a sementeira que alguém rasgou pois esse é o sinal
de que chegarão as asas das aves quando o sol mourejar.
Então os estampidos traduzem os homens cujas bocas se abeiram dos regatos
para tomar em mãos o sangue da carnificina e então serás
o que há-de vir no percurso dos silêncios, o mesmo percurso das tectrizes
e das borboletas que, porque voam, navegam entre as papoilas
e as estevas. E então dirás que a liberdade também se esquece
como o furor aquece a linfa. E então estarás teso
como o eucalipto que já secou a fonte.

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Álvaro de Campos – “A Tabacaria” (2)

30.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Este poema de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa) foi declamado por mim, pela primeira vez, no dia 28 de Abril de 2006, incluído no programa Palavras de Ouro nº 41. Volto a declama-lo agora, passados 6 anos.

Não sou nada. 

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém 
sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por 
gente,

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, 

Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos 
nos homens,

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de 
nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tomando-se esta casa e este lado 
da rua

A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida 
apitada 

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos 
na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,

E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa, 

Fui até ao campo com grandes propósitos.

Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira.
Em que hei-de 
pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso?
Mas penso ser tanta coisa! 

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode 
haver tantos!

Génio?
Neste momento

Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu, 

E a história não marcará, quem sabe?, nem um,

Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.

Não, não creio em mim.

Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas 
certezas! 

Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos 
certo?

Não, nem em mim …


Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo 

Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?

Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas
– 
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,

E quem sabe se realizáveis, 

Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?

O mundo é para quem nasce para o conquistar

E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que 
tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez. 

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que 
Cristo,

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu. 

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

Ainda que não more nela;

Serei sempre o que não nasceu para isso; 

Serei sempre só o que tinha qualidades; 

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de 
uma parede sem porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente

O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo, 

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha. 

Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama; 

Mas acordamos e ele é opaco,

Levantamo-nos e ele é alheio, 

Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafisica no mundo senão chocolates.

Olha que as religiões todas não ensinam mais do que 
a confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que 
comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de 
estanho,

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei 

A caligrafia rápida destes versos,

Pórtico partido para o Impossível.

Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem 
lágrimas,

Nobre ao menos no gesto largo com que atiro

A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,

E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,

Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,

Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida, 

Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,

Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,

Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê -, 

Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que 
inspire!

Meu coração é um balde despejado.

Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco

A mim mesmo e não encontro nada.

Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta. 

Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,

Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam, 

Vejo os cães que também existem, 

E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,

E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri, 

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses 
nem cresses 

(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer 
nada disso); 

Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem 
cortam o rabo 

E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,

E o que podia fazer de mim não o fiz. 

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, 
e perdi-me. 

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha 
tirado.

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência 

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,

Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,

E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,

Calcando aos pés a consciência de estar existindo,

Como um tapete em que um bêbado tropeça

Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada 

E com o desconforto da alma mal-entendendo.

Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.

A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos 
também.

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu. 


Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como 
gente

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo 
de coisas como tabuletas, 

Sempre uma coisa defronte da outra,

Sempre uma coisa tão inútil como a outra, 

Sempre o impossível tão estúpido como o real,

Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de 
mistério da superfície,

Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem 
outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim. 

Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos em que digo 
o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los

E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.

Sigo o fumo como uma rota própria,

E gozo, num momento sensitivo e competente,

A libertação de todas as especulações

E a consciência de que a metafísica é uma consequência 
de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira

E continuo fumando.

Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.
(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira 
Talvez fosse feliz.) 

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira 
das calças?).

Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafisica. 

(O dono da Tabacaria chegou à porta.) 

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.

Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o dono 
da Tabacaria sorriu.

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Palavras 163 – “Sétimo aniversário”

16.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nem sempre os aniversários do Estúdio Raposa foram comemorados, vá lá saber-se porquê. Alguns foram esquecidos, outros, quase que famosos, especialmente aquele em que se ouviu uma entrevista com o Pai Natal. Ou teria sido no Natal…bem, já não sei.
Pois, no dia 17 de Julho de 2005, três meses depois de aparecerem nos EUA, tinha de ser nos EUA, os áudio blogues, podcast ou podcasting, como quiserem, o Estúdio Raposa nasceu e estou em crer que foi o segundo em língua portuguesa. Falhou o primeiro lugar por dias.
Dezassete de Julho de 2005, 17 de Julho de 2012, sete anos, o que, em termos de Internet, já se pode considerar uma bela idade, durante os quais foi lida ou declamada uma quantidade de páginas de literatura e poesia, impossível de calcular.

Vou comemorar este 7º aniversário – atenção à simbologia do sete – em duas vertentes: confissões e gostos. Eu explico. Por confissões entendo meia dúzia de palavras que não têm sido ditas até agora. Como sabem, chegados a certa idade não se tem tanta necessidade de representar no palco da vida. Daí que, nesta idade, algumas das nossas facetas possam ser exibidas sem constrangimentos. Não, não vou chamar o padre. Vou, apenas responder a duas ou três questões importantes que me foram postas ao longo dos sete anos e às quais não respondi de peito aberto.
A outra vertente, a dos gostos, vai incluir a leitura de quatro textos, três poemas e um de prosa, que com a dificuldade que não podem imaginar, escolhi para reler, neste programa. Todos eles já estão disponíveis no Estúdio Raposa, mas vou lê-los de novo em homenagem aos autores.
Sairá melhor? Pior? Não sei. Será certamente, uma leitura diferente. Ouviremos dois poemas e um texto em prosa de Eugénio de Andrade e um poema de Fernando Pessoa.

Uma das questões que me foram colocadas e às quais não respondi, digamos, abertamente, foi de que forma escolho os textos que leio.
Então aqui vai:
Não tenho um critério para a escolha da poesia que leio e divulgo no Estúdio Raposa. Se há estratégia ela resume-se à estratégia do acaso.
Às vezes respondo a pedidos dos autores, outras às sugestões de amigos cujo bom gosto e competência reconheço, mas na maior parte das vezes, a escolha deve-se ao acaso, a um encontro não previsto com um livro, um jornal, um blogue, no Facebook…
Há poesia que não entendo. Tal como alguma pintura e música, entre outras artes. Às vezes, o não entender certa poesia, não é motivo para a não ler, mas prefiro perceber o que estou a dizer. Outras vezes percebo bem de mais e não gosto. Palavras como “peles que se tocam”, “suores partilhados”, “ávidas bocas”, “desejos insaciáveis”, “rios que correm para a foz”, “vento que sopra”, “bocas sorrindo”, “calor de verão”, “coração ardente”, “amo-te muito”, “só a ti enchergo”, “mãos que acariciam”, “sonos perdidos”, “auroras de luz”, “dedos atrevidos”, “suspiros profundos”, “seios altaneiros”, “afinal foi um sonho”, uff, chega – não me seduzem.
Alguns amigos, entendidos em poesia, acusam-me de dois pecados: leio, vezes de mais, poesia de baixa qualidade ou uso música de fundo que na opinião deles, “desvia” a atenção da palavra do poeta.
Quando leio poesia de autores já desaparecidos, não espero opiniões ou agradecimentos. Consta que, à nuvem onde residem, não chega a rede a que damos o nome de Internet. 
Quando leio poesia de autores vivos, alguns contactam-me com a tradicional “não tenho palavras…”, outros encontram algumas para manifestarem a sua satisfação e há os que “nem água vai”. Um obrigado não ficava mal.
Resumindo: na escolha dos textos que leio, não há critérios, há acasos.

E então, não tem colaboradores? – perguntam várias vezes.
Claro que tenho colaboradores. E os primeiros são aqueles que me escrevem a oferecer palavras de apreço pelo meu trabalho.
Não destaco entre estes, ninguém em particular porque vão do cidadão chinês que gostou de me ouvir apesar de, no início, não perceber que língua era aquela, só porque gostou da sua musicalidade, até ao desconhecido que diz apenas: obrigado pelo seu trabalho. Ainda uma referência a muitos outros colaboradores que usam o Estúdio Raposa para ensinarem os seus alunos a gostarem da sua língua.

Outra coisa são as três pessoa que tiveram grande importância no nascimento e desenvolvimento do Estúdio Raposa e que, talvez, eu nunca tenha destacado com o ênfase merecido.
Por ordem, no tempo, em primeiro lugar o João Rola, técnico de som, atualmente no estúdio Dizplay, que de há muito me vem construindo a estrutura técnica de que hoje disponho, conjunto de equipamentos que não receia meças com os estúdios profissionais. Já a utilização que faço das ferramentas de que disponho, é outra história. Pobre sonorizador e …pronto!
André Toscano o guru de informática que colocou on line a primeira edição do Estúdio Raposa e me apoiou nas seguintes, num tempo em que o podcasting estava a dar os primeiros passos.
Finalmente, Otília Martel, na altura conhecida como Menina Marota no apoio literário e procura dos novos valores surgidos na blogosfera. A sua ajuda só se reduziu quando o Estúdio Raposa deixou de divulgar os poetas que “ainda não tinham chegado às estrelas”, programa denominado “Lugar aos Outros” e que está suspenso há cerca de dois anos.
Muitos outros amigos me têm prestado uma ajuda preciosa e quase sempre sem cobrarem um tostão o que é de assinalar nos tempos que correm. Não os menciono porque são muitos e porque corria o risco de me esquecer de alguns. Talvez um dia, noutras circunstâncias venha a referi-los.

Mas, vamos à poesia.
Eugénio de Andrade e Fernando Pessoa. O primeiro porque é o poeta cuja escrita melhor se adapta á minha voz e também, porque foi um dos grandes poetas que tiveram a amabilidade de me ouvir e de apoiarem na declamação das suas palavras.
Começo com Fernando Pessoa porque o poema que vou ler, “O Menino de sua Mãe”, foi um dos primeiros que gravei e em condições técnicas muito diferentes das de agora. Vale por ser Fernando Pessoa e pela comparação técnica.
Depois, de Eugénio de Andrade, “Adeus”, divulgado em inúmeros vídeos, “Mãe”, um dos seus poemas mais conhecidos e “As mães”, um dos mais belos textos em língua portuguesa, na opinião de quem sabe, no caso Manuel Hermínio Monteiro.
Ouviremos estes quatro fascinantes e faiscantes diamantes da língua portuguesa, sem interrupção.

No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas trespassado

Duas de lado a lado

Jaz morto, e arrefece.

Raia-lhe a farda o sangue.

De braços estendidos

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

e cego os céus perdidos.

Tão jovem! que jovem era!

(Agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

“o menino da sua mãe”

Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lha a mãe.

Está inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.

De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embaínhada

De um lenço…

Dera-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.

Lá longe, em casa, há prece:
“Que volte cedo e bem!”

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto, e apodrece,

O menino da sua mãe.

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor

e o que nos ficou não chega

para afastar o frio de quatro paredes.

Gastámos tudo menos o silêncio.

Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,

gastámos as mãos à força de as apertarmos,

gastámos o relógio e as pedras das esquina
s
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras

e não encontro nada.

Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!

Era como se todas as coisas fossem minhas:

quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos seio peixes verdes!

E eu acreditava.

Acreditava,

porque ao teu lado

todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos.

Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.

Era no tempo em que os meus olhos
eram peixes verdes.

Hoje são apenas os meus olhos.

É pouco, mas é verdade,

uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor…,

já se não passa absolutamente nada.

E no entanto, antes das palavras gastas,

tenho a certeza

de que todas as coisas estremeciam

só de murmurar o teu nome

no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.

Dentro de ti

Não há nada que me peça água.

O passado é inútil como um trapo.

E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.

No mais fundo de ti.

eu sei que traí, mãe!

Tudo porque já não sou

o retrato adormecido

no fundo dos teus olhos!

Tudo porque tu ignoras

que há leitos onde o frio não se demora

e noites rumorosas de águas matinais!

Por isso, às vezes, as palavras que te digo

são duras, mãe,

e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas

que apertava junto ao coração

no retrato da moldura!

Se soubesses como ainda amo as rosas,

talvez não enchesses as horas de pesadelos…

Mas tu esqueceste muita coisa!

Esqueceste que as minhas pernas cresceram,

que todo o meu corpo cresceu,

e até o meu coração

ficou enorme, mãe!

Olha, queres ouvir-me?:

às vezes ainda sou o menino

que adormeceu nos teus olhos…

ainda aperto contra o coração

rosas tão brancas

como as que tens na moldura..

ainda oiço a tua voz:

Era uma vez uma princesa

no meio de um laranjal…

Mas – tu sabes! – a noite é enorme

e todo o meu corpo cresceu…

Eu saí da moldura,

dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.

Guardo a tua voz dentro de mim.

E deixo-te as rosas…

Boa noite. Eu vou com as aves!

Quando voltar ao Alentejo as cigarras já terão morrido. Passaram o verão todo a transformar a luz em canto – não sei de destino mais glorioso. Quem lá encontraremos, pela certa, são aquelas mulheres envolvidas na sombra dos seus lutos, como se a terra lhes tivesse morrido e para todo o sempre se quedassem órfãs. Não as veremos apenas em Barrancos ou em Castro Laboreiro, elas estão em roda a parte onde nasça o sol: em Cória ou Catânia, em Mistras ou Santa Clara del Cobre, em Varchats ou Beni Mellal, porque elas são as Mães. O olhar esperto ou sonolento, o corpo feito um espeto ou mal podendo com as carnes, elas são as Mães. A tua; a minha, se não tivera morrido tão cedo, sem tempo para que o rosto viesse a ser lavrado pelo vento.
Provavelmente estão aí desde a primeira estrela. E como duram! Feitas de urze ressequida, parecem imortais. Se o não forem, são pelo menos incorruptíveis, como se participassem da natureza do fogo. Com mãos friáveis teceram a rede dos nossos sonhos, alimentaram-nos com a luz coada pela obscuridade dos seus lenços. Às vezes encostam-se à cal dos muros a ver passar os dias, roendo uma côdea ou fazendo uns carapins para o último dos netos, as entranhas abertas nas palavras que vão trocando entre si; outras vezes caminham por quelhas e quelhas de pedra solta, batem a um postigo, pedem lume, umas pedrinhas de sal, agradecem pela alma de quem lá têm, voltam ao calor animal da casa, aquecem um migalho de café, regam as sardinheiras, depois de varrerem o terreiro. Elas são as Mães, essas mulheres que Goethe pensa estarem fora do tempo e do espaço, anteriores ao Céu e ao Inferno, assim velhas, assim terrosas, os olhos perdidos e vazios, ou vivos como brasas assopradas. Solitárias ou inumeráveis, aí as tens na rua frente, graves, caladas, quase solenes na sua imobilidade, esquecidas de que foram o primeiro orvalho do homem, a primeira luz.

Mas também as podes ver seguindo por lentas veredas de sombra, as pernas pouco ajudando a vontade, atrás de uma ou duas cabras, com restos de garbo na cabeça levantada, apesar das tetas mirradas. Como encontrarão descanso nos caminhos do mundo?
Não há ninguém que as não tenha visto com umas contas nas mãos engelhadas rezando pelos seus defuntos, rogando pragas a uma vizinha que plantou à roda do curral mais três pés de couve do que ela, regressando da fonte amaldiçoando os anos que já não podem com o cântaro, ou debaixo de uma oliveira roubando alguma azeitona para retalhar.* E cheiram a migas de alho, a ranço, a aguardente, mas também a poejos colhidos nas represas, a manjerico quando é pelo S. João. E aos domingos lavam a cara, e mudam de roupa, e vão buscar à arca um lenço de seda preta, que também põem nos enterros. E vede como, ao abrir, a arca cheira a alfazema! Algumas ainda cuidam das sécias que levam aos cemitérios ou vendem nas feiras, juntamente com um punhado de maçãs amadurecidas no aroma dos fenos. E conheço uma que passa as horas vigiando as traquinices de um garoto que tem na testa uma estrelinha de cabrito montês – e que só ela, só ela vê.
Elas são as Mães, ignorantes da morte, mas certas da sua ressurreição.

Terminou o programa comemorativo do 7º aniversário do Estúdio Raposa. Nele ouvimos algumas palavras necessárias e poemas de Eugénio de Andrade e Fernando Pessoa pelos motivos já referidos. As minhas desculpas pelo tamanho do programa. Mandam as regras que deveria ser mais curto.
Mas, antes de terminar, uma palavra para o facto do Estúdio Raposa de há uns tempos a esta parte, ter passado a exibir um botão com o nome “Donativo”. Causou alguma estranheza, mas está lá não tanto à espera de contribuições financeiras, mas para lembrar que a ideia de que tudo o que está disponível na Internet deve ser de graça, é uma ideia, no mínimo…injusta e perigosa.
Obrigado por me ouvirem.

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Federico Garcia Lorca – “A colhida e a morte”

11.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Pranto por Ignacio Sanches Mejias (Excerto)

Davam cinco da tarde.
Davam as cinco em ponto dessa tarde.
Um moço trouxe uma toalha branca
davam cinco da tarde.
Uma seira de cal já preparada
davam cinco da tarde.
Tudo o mais era a morte e só a morte
davam cinco da tarde.

O vento fez voar os algodões
davam cinco da tarde.
o óxido semeou cristal e níquel
davam cinco da tarde.
Já lutavam a pomba e o leopardo
davam cinco da tarde.
E a coxa com uma haste desolada
davam cinco da tarde.
Começaram os dobres do bordão
davam cinco da tarde.
As campanas de arsénico e o fumo
davam cinco da tarde.
Pelas esquinas grupos de silêncio
davam cinco da tarde.
E o touro só de coração ao alto!
davam cinco da tarde.
Quando o suor de neve foi chegando
davam cinco da tarde.
e quando a praça se cobriu de iodo
davam cinco da tarde.
a morte pôs seus ovos na ferida
davam cinco da tarde.

Davam cinco da tarde.
Davam as cinco em ponto dessa tarde.

Um ataúde em rodas era a cama
davam cinco da tarde.
Ossos e flautas soavam-lhe no ouvido
davam cinco da tarde.
Já lhe mugia o touro pela fronte
davam cinco da tarde.
Irisava-se o quarto de agonia
davam cinco da tarde.
Ao longe aproximava-se a gangrena
davam cinco da tarde.
Tromba de lírio pelas verdes ínguas
davam cinco da tarde.
As feridas queimavam como sóis
davam cinco da tarde.
e a multidão a estilhaçar janelas
davam cinco da tarde.

Davam cinco da tarde.
Ai que terríveis cinco horas da tarde!
Davam as cinco em todos os relógios!
Davam as cinco em sombra dessa tarde!

(Trad. De Vasco Graça Moura)

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Mia Couto – “Poema da despedida”

10.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei
Ainda assim,
escrevo

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M. S. Lourenço – “Vejo que não queres…”

08.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

III
Vejo que não queres a equação de uma linha,
Os pontos compostos todos à sua volta,
Uma regra para dispor em cada caso
A ordenar por dentro o conjunto inteiro.
Não queres, dizes, a máquina funcional
Que calcula a posição de cada ponto –
Deixa-los expandir ao acaso, uma nebulosa
Que cresce sem limites num impulso variável.

Que linha é essa no entanto quando olhas
Sem ver nas partes um eixo dominante?
Em breve o horizonte esgota-se e o que fora
Uma explosão do sol é uma área trivial.
Extinto o cânon não distingues mais
Uma barra firme dum traço instável.
Por fim vibras com o intervalo subtil,
Voltas do nó orgânico à fuga poligonal.

Não se tocam as linhas de um compasso,
Deixam-se suspensas numa presença imóvel,
Perpendiculares ao fundo a bater o tempo,
Um guia silencioso no texto medieval.
Ficam a raiz do desenho, o arame da frase
Como um esqueleto de metro no meio do verso livre:
Soam no osso a respiração do bloco,
Um andaime dobrado numa fibra contínua.

Não há volumes de uma só faceta
Em movimento paralelo ao mesmo plano.
Não medimos só ponto contra ponto
Nas imagens discretas da mesma linha,
Mas também o acordo da figura vertical
Em que o bloco ressalta integrável.
A treva desce aos vapores do fundo:
A face sua oblíqua através do espelho.

(de Arte Combinatória, Moraes editores, 1971 – Círculo de Poesia)

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Eduardo Alves da Costa – “Maiakovski”

06.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

O poema mais popular do autor, “No caminho, com Maiakóvski”, escrito na década de 1960 como manifestação de revolta à intolerância e violência impostas pela ditadura militar, foi envolvido numa série de equívocos quanto à atribuição de autoria. Para alguns, o texto era do poeta russo Vladimir Maiakóvski. Para outros, o verdadeiro autor era o dramaturgo alemão Bertold Brecht.
Foi graças à telenovela Mulheres Apaixonadas, originalmente exibida pela Rede Globo em 2003, numa cena em que a personagem de Christiane Torloni lê um trecho do poema, dando o crédito correto, que o mal-entendido foi desfeito.

Assim como a criança
humildemente afaga
a imagem do herói,
assim me aproximo de ti, Maiakóvski.
Não importa o que me possa acontecer
por andar ombro a ombro
com um poeta soviético.
Lendo teus versos,
aprendi a ter coragem.

Tu sabes,
conheces melhor do que eu
a velha história.
Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim.
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem:
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça,
alheia ao terror.
Os humildes baixam a cerviz;
e nós, que não temos pacto algum
com os senhores do mundo,
por temor nos calamos.
No silêncio de meu quarto
a ousadia me afogueia as faces
e eu fantasio um levante;
mas manhã,
diante do juiz,
talvez meus lábios
calem a verdade
como um foco de germes
capaz de me destruir.

Olho ao redor
e o que vejo
e acabo por repetir
são mentiras.
Mal sabe a criança dizer mãe
e a propaganda lhe destrói a consciência.
A mim, quase me arrastam
pela gola do paletó
à porta do templo
e me pedem que aguarde
até que a Democracia
se digne aparecer no balcão.
Mas eu sei,
porque não estou amedrontado
a ponto de cegar, que ela tem uma espada
a lhe espetar as costelas
e o riso que nos mostra
é uma tênue cortina
lançada sobre os arsenais.

Vamos ao campo
e não os vemos ao nosso lado,
no plantio.
Mas ao tempo da colheita
lá estão
e acabam por nos roubar
até o último grão de trigo.
Dizem-nos que de nós emana o poder
mas sempre o temos contra nós.
Dizem-nos que é preciso
defender nossos lares
mas se nos rebelamos contra a opressão
é sobre nós que marcham os soldados.

E por temor eu me calo,
por temor aceito a condição
de falso democrata
e rotulo meus gestos
com a palavra liberdade,
procurando, num sorriso,
esconder minha dor
diante de meus superiores.
Mas dentro de mim,
com a potência de um milhão de vozes,
o coração grita – MENTIRA!

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Almeida Garrett – “Estes sítios”

06.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Olha bem estes sítios queridos,
Vê-os bem neste olhar derradeiro…
Ai!, o negro dos montes erguidos,
Ai!, o verde do triste pinheiro!
Que saudade que deles teremos…
Que saudade! ai, amor, que saudade!
Pois não sentes, neste ar que bebemos,
No acre cheiro da agreste ramagem,
Estar-se alma a tragar liberdade
E a crescer de inocência e vigor!
Oh!, aqui, aqui só se engrinalda
Da pureza da rosa selvagem,
E contente aqui só vive Amor.
O ar queimado das salas lhe escalda
De suas asas o níveo candor,
E na frente arrugada lhe cresta
A inocência infantil do pudor.
E oh!, deixar tais delícias como esta!
E trocar este céu de ventura
Pelo inferno da escrava cidade!
Vender alma e razão à impostura,
Ir saudar a mentira em sua corte,
Ajoelhar em seu trono à vaidade,
Ter de rir nas angústias da morte,
Chamar vida ao terror da verdade…
Ai!, não, não… nossa vida acabou,
Nossa vida aqui toda ficou
Diz-lhe adeus neste olhar derradeiro,
Dize à sombra dos montes erguidos,
Dize-o ao verde do triste pinheiro,
Dize-o a todos os sítios queridos
Desta rude, feroz soledade,
Paraíso onde livres vivemos,
Oh!, saudades que dele teremos,
Que saudade! ai, amor, que saudade!

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David Mourão-Ferreira – “Penélope”

05.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Mais do que um sonho: comoção!
Sinto-me tonto, enternecido,
quando, de noite, as minhas mãos
são o teu único vestido.

E recompões com essa veste,
que eu, sem saber, tinha tecido,
todo o pudor que desfizeste
como uma teia sem sentido;
todo o pudor que desfizeste
a meu pedido.

Mas nesse manto que desfias,
e que depois voltas a pôr,
eu reconheço os melhores dias
do nosso amor.

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Encandescente – “Rotura”

02.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Todos os dias entro no mesmo dia.
Igual ao de ontem, ao de anteontem,
Ao que amanhã há-de vir.
Sei exactamente o que farei amanhã às quatro da tarde,
Assim como sei o que farei às duas,
Ou às dez.
A vida agenda programada,
Calendário viciado,
Rotina,
Destino,
Fado.
Dê-se à vida o nome que se quiser!
Eu, quero mais do que isto.
Quero tudo!,
Mesmo não sabendo o que tudo é.
Quero um destino grande num tempo pequeno,
Quero partir o ponteiro que me marca a hora
E sentir!
Desregradamente,
Intemporalmente,
Excessivamente,
Toda e qualquer emoção.
Sentir!
Sem condicionantes, moralismos, ditames ditados,
Preconceitos, obstáculos, conceitos assimilados,
Sentir!
Baixar as defesas, cortar as mordaças,
Abrir os braços, rasgar carapaças.
E sentir!
Partir o ponteiro que me marca o tempo,
Que o pontua, regula e compassa:
Sina… Calendário…Destino …Farsa…
Farsa… Calendário…Destino …Vida…
E sentir!
Mesmo que parta a cara,
Mesmo que fique de rastos,
Mesmo que nunca mais reúna os pedaços,
Quero rasgar o peito e abrir os braços…
E sentir o pulsar, a explosão,
E viver pura, límpida, única a emoção,
E dá-la dizendo:
Esta, sou eu!
Este é o meu tempo, o meu calendário,
O meu objectivo e itinerário,
Recusar a vida, dia programado,
Viver a emoção sem tempo marcado,
E sentir a paixão que me corre nas veias
Sem limites
Sem regras
Sem pejo
Sem peias.

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Mário de Sá-Carneiro – “Quási”

28.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

sol

Um pouco mais de sol – eu era brasa,

Um pouco mais de azul – eu era além.

Para atingir, faltou-me um golpe de asa…

Se ao menos eu permanecesse aquém…

Assombro ou paz? Em vão… Tudo esvaído

Num grande mar enganador de espuma;

E o grande sonho despertado em bruma,

O grande sonho – ó dor! – quase vivido…

Quase o amor, quase o triunfo e a chama,

Quase o princípio e o fim – quase a expansão…

Mas na minh’alma tudo se derrama…

Entanto nada foi só ilusão!

De tudo houve um começo … e tudo errou…

— Ai a dor de ser — quase, dor sem fim…

Eu falhei-me entre os mais, falhei em mim,

Asa que se elançou mas não voou…

Momentos de alma que, desbaratei…

Templos aonde nunca pus um altar…

Rios que perdi sem os levar ao mar…

Ânsias que foram mas que não fixei…

Se me vagueio, encontro só indícios…

Ogivas para o sol — vejo-as cerradas;

E mãos de herói, sem fé, acobardadas,

Puseram grades sobre os precipícios…

Num ímpeto difuso de quebranto,

Tudo encetei e nada possuí…

Hoje, de mim, só resta o desencanto

Das coisas que beijei mas não vivi…

Um pouco mais de sol — e fora brasa,

Um pouco mais de azul — e fora além.

Para atingir faltou-me um golpe de asa…

Se ao menos eu permanecesse aquém…

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Manuel da Fonseca – “Segunda”

28.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quando foi que demorei os olhos
sobre os seios nascendo debaixo das blusas,
das raparigas que vinham, à tarde, brincar comigo?…
… Como nasci poeta,
devia ter sido muito antes que as mães se apercebessem disso
e fizessem mais largas as blusas para as suas meninas.
Quando, não sei ao certo.

Mas a história dos peitos, debaixo das blusas,
foi um grande mistério.
Tão grande
que eu corria até ao cansaço.
E jogava pedradas a coisas impossíveis de tocar,
como sejam os pássaros quando passam voando.
E desafiava,
sem razão aparente,
rapazes muito mais velhos e fortes!
E uma vez,
de cima de um telhado,
joguei uma pedrada tão certeira,
que levou o chapéu do senhor administrador!
Em toda a vila,
se falou, logo, num caso de política;
e o senhor administrador
mandou vir, da cidade, uma pistola,
que mostrava, nos cafés, a quem a queria ver;
e os do partido contrário,
deixaram crescer o musgo nos telhados
com medo daquela raiva de tiros para o céu…

Tal era o mistério dos seios nascendo debaixo das blusas!

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Sebastião da Gama – “Pelo sonho é que vamos”

28.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Pelo sonho é que vamos,

comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?

Haja ou não haja frutos,

pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.

Basta a esperança naquilo

que talvez não teremos.

Basta que a alma demos,

com a mesma alegria,

ao que desconhecemos

e ao que é do dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?

– Partimos. Vamos. Somos.

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Rimance – “Dona Silvana”

22.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Indo a Dona Silvana
Pelo corredor acima
A tocar sua guitarra
(Oh, que tão bem a tangia!…)
Foi acordando seus pais
Que sua sesta dormiam.

— Tu que tens, Dona Silvana,
Tu que tens, ó filha minha?
— Ver minhas irmãs casadas
Vestidas à maravilha…
Eu, por ser a mais fermosa,
Por que razão ficaria?

— Não tenho com quem te case,
Senão bem te casaria…
Só se for conde Alberto…
(É casado e tem família…)
— Mande-mo aqui chamar
De sua parte e da minha.
Quero falar com ele
Dentro de uma Ave-Maria.

— Aqui estou, real senhor.
Que quer vossa senhoria?
— Quero que mates viscondessa
Pra casar com filha minha.
— Viscondessa não na mato
Que a morte não lhe é merecida.
— Mata, mata, conde Alberto,
Senão eu tiro-te a vida.

Indo o conde para casa
Mais triste que o mesmo dia,
Mandou fechar as janelas
Pra não ver que era dia;
Mandou pôr a sua mesa
Para fazer que comia.
As lágrimas eram tantas,
Já pela mesa corriam.

— Tu que tens, ó conde Alberto,
Tu que tens, ó meu amor?
— Manda o Rei que te matasse,
Manda o Rei e meu senhor.
Só se fosses pra um convento
Como freira recolhida…
— Darias-me o pão por onça
E a água por medida…

Ainda a palavra não era dita,
Já o Rei batia à porta:
Que lhe mandasse a cabeça,
Que era com pena de morte.
Que lha não desse trocada,
Que ele bem na conhecia.

— Adeus, moços, adeus, moças,
Adeus, espelho onde me eu via!
Adeus, jardins de flores,
Onde eu me advertia!
Anda cá, ó meu menino,
Que te quero abraçar!
Anda cá, ó meu menino,
Que te quero dar de mamar!

Mama, mama, meu menino,
Este leite de paixão:
Hoje, contigo nos braços,
Amanhã, já no caixão.
Mama, mama, meu menino,
Este leite de amargura:
Hoje, contigo nos braços,
Amanhã, na sepultura.

Toca o sino no palácio…
— Ó mamã, quem morreria?
— Morreu a Dona Silvana
Pela traição que fazia:
Descasar os bem casados,
Coisa que Deus não queria.

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Rimance – “Donzela que vai à guerra”

20.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

– “Já se apregoam as guerras

Entre França e Aragão:

Ai de mim que já sou velho,

Não nas posso brigar, não!

De sete filhas que tenho

Sem nenhuma ser varão! …
”
Responde a filha mais velha

Com toda a resolução:

– “Venham armas e cavalo

Que eu serei filho varão.”

– “Tendes los olhos mui vivos,

Filha, conhecer-vos-ão.”

– “Quando passar pela armada

Porei os olhos no chão.”

- “Tendes los ombros mui altos

Filha, conhecer-vos-ão.”

- “Venham armas bem pesadas,

Os ombros abaterão.”

- “Tendes los peitos mui altos

Filha, conhecer-vos-ão.”

- “Venha gibão apertado,

Os peitos encolherão.”

– “Tendes las mãos pequeninas

Filha, conhecer-vos-ão.”

- “Venham já guantes de ferro,

E compridas ficarão.”

– “Tendes los pés delicados,

Filha, conhecer-vos-ão.”

– “Calçarei botas e esporas,

Nunca delas sairão.”


– “Senhor pai, senhora mãe,

Grande dor de coração;

Que os olhos do conde Daros

São de mulher, de homem não.”
– “Convidai-o vós, meu filho,

Para ir convosco ao pomar,

Que se ele mulher for,

À maçã se há-de pegar.
”
A donzela por discreta,

O camoês foi apanhar,
– “Oh que belos camoeses

Para um homem cheirar!

Lindas maçãs para damas

Quem lhas pudera levar!”

- “Senhor pai, senhora mãe,

Grande dor de coração;

Que os olhos do conde Daros

São de mulher de homem não.”
– “Convidai-o vós, meu filho,

Para convosco jantar;

Que, se ele mulher for

No estrado se há-de encruzar.
”
A donzela, por discreta,

Nos altos se foi sentar.

– “Senhor pai, senhora mãe,

Grande dor de coração;

Que os olhos do conde Daros

São de mulher, de homem não.”

– “Convidai-o vós, meu filho,

Para convosco feirar;

Que, se ele mulher for,

Às fitas se há-de pegar.
”
A donzela, por discreta,

Uma adaga foi comprar.

– “Oh que bela adaga esta

Para com homens brigar!

Lindas fitas para damas:

Quem lhas pudera levar!”
– “Senhor pai, senhora mãe,

Grande dor de coração;

Que os olhos do conde Daros

São de mulher, de homem não.”

– “Convidai-o vós, meu filho,

Para convosco nadar;

Que, se ele mulher for,

O convite há-de escusar.
”
A donzela por discreta,

Começou-se a desnudar…

Traz-lhe o seu paje uma carta,

Pôs-se a ler, pôs-se a chorar;

– “Novas me chegam agora,

Novas de grande pesar;

De que minha mãe é morta,

Meu pai se está a finar.

Os sinos da minha terra

Os estou a ouvir dobrar;

E duas irmãs que eu tenho,

Daqui as oiço chorar.

Monta, monta, cavaleiro!

Se me quer acompanhar.
”
Chegavam a uns altos paços

Foram-se logo apear.

– “Senhor pai. trago-lhe um genro,

Se o quiser aceitar;

Foi meu capitão na guerra,

De amores me quis contar…

Se ainda me quer agora,

Com meu pai há-de falar.
”
Sete anos andei na guerra

E fiz de filho varão.

Ninguém me conheceu nunca

Senão o meu capitão;

Conheceu-me pelos olhos,

Que por outra coisa não.

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Rimance – “A Bela Infanta”

20.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Estava a bela infanta

No seu jardim assentada,

Com o pente de oiro fino

Seus cabelos penteava.

Deitou os olhos ao mar

Viu vir uma nobre armada;

Capitão que nela vinha,

Muito bem que a governava.
– “Dize-me, Ó capitão

Dessa tua nobre armada,

Se encontraste meu marido

Na terra que Deus pisava.”
– “Anda tanto cavaleiro

Naquela terra sagrada…

Dize-me tu, Ó senhora,

As senhas que ele levava.”
– “Levava cavalo branco,

Selim de prata doirada;

Na ponta da sua lança

A cruz de Cristo levava.”
– “Pelos sinais que me deste

Lá o vi numa estacada

Morrer morte de valente:

Eu sua morte vingava.”
– “Ai triste de mim viúva,

Ai triste de mim coitada!

De três filhinhas que tenho,

Sem nenhuma ser casada!…
– “Que darias tu, senhora,

A quem no trouxera aqui?”

- “Dera-lhe oiro e prata fina,

Quanta riqueza há por i.”

– “Não quero oiro nem prata,
Não nos quero para mi:

Que darias mais, senhora,

A quem no trouxera aqui?”
– “De três moinhos que tenho,

Todos três tos dera a ti;

Um mói o cravo e a canela,

Outro mói do gerzeli:

Rica farinha que fazem!

Tomara-os el-rei pra si.”
– “Os teus moinhos não quero,

Não nos quero para mi:

Que darias mais, senhora,

A quem to trouxera aqui?”
– “As telhas do meu telhado

Que são de oiro e marfim.”

– “As telhas do teu telhado

Não nas quero para mi:

Que darias mais, senhora,

A quem no trouxera aqui?”
– “De três filhas que eu tenho,

Todas três te dera a ti:

Uma para te calçar.

Outra para te vestir,

A mais formosa de todas

Para contigo dormir.”
– “As tuas filhas, infanta,

Não são damas para mi:

Dá-me outra coisa, senhora,

Se queres que o traga aqui.
– “Não tenho mais que te dar,

Nem tu mais que me pedir.”

– “Tudo, não, senhora minha,

Que inda te não deste a ti.”
– “Cavaleiro que tal pede,

Que tão vilão é de si,

Por meus vilões arrastado

O farei andar aí

Ao rabo do meu cavalo,

À volta do meu jardim.

Vassalos, os meus vassalos,

Acudi-me agora aqui!”
– “Este anel de sete pedras

Que eu contigo reparti. ..

Que é dela a outra metade?

Pois a minha, vê-Ia aí!”
– “Tantos anos que chorei,

Tantos sustos que tremi!…

Deus te perdoe, marido,

Que me ias matando aqui.”

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Albert Ehrenstein – “O Poeta e a Guerra”

08.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Eu cantei os cânticos da vingança em vermelho rasgada,
E cantei o silêncio do lago de baías arborizadas;
Mas ninguém se juntou a mim,
Íngreme, solitário
Como a cigarra se canta,
Cantei o meu canto para mim.
Os meus passos vão-se desvanecendo, extenuados
Na areia do meu esforço.
Os olhos caem-me de fadiga,
Estou cansado dos desconsolados vaus,
De atravessar rios, mulheres e ruas.
À beira do abismo, não penso
No escudo e na lança.
Assoprado pelas bétulas,
Ensombrado pelo vento,
Adormeço ao som da harpa
De outros,
Para quem ela escorre alegremente.
Não me mexo,
Porque todos os pensamentos e acções
Turvam a pureza do mundo.

(1916)
(tradução de João Barrento)

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Alexandre O’Neill – “Velha fábula…”

08.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Minuciosa formiga
não tem que se lhe diga:
leva a sua palhinha
asinha, asinha.

Assim devera eu ser
e não esta cigarra
que se põe a cantar
e me deita a perder.

Assim devera eu ser:
de patinhas no chão,
formiguinha ao trabalho
e ao tostão.

Assim devera eu ser
se não fora
não querer.

( Obrigado, formiga!
Mas a palha não cabe
onde você sabe…)

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Paula Raposo – “A tua canção”

08.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

O mar voltou a chamar-me,
brando, azul;
ondulando
levemente de espuma e paz.

Eu regresso, de mansinho
(ao seu afago),
canto a tua canção
-num beijo inesgotável-
quando o mar me desperta
todas as ausências:
eu te chamo breve em nós.

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Alexandre O’Neill – “O cheiro a cera e a incenso”

07.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

O cheiro a cera e a incenso sobe da infância e é recordado

pelo olfacto da memória. Há certos cheiros que persistem

vida fora. O cheiro da relva recém-cortada frente à casa, o

cheiro-maçã de esperma nos lençóis, o cheiro dos cavalos

depois duma caminhada, o cheiro-estalido da lenha na 

lareira, o cheiro de roupa de linho no estendal por detrás da 

casa, o cheiro silvestre da minha primeira namorada, o

cheiro dos velhos álbuns de fotografias (cheiro de morte,

mas com cheiro de vida lá dentro) sobretudo quando se sabe

que o almirante navega há muitos anos num mar para

colorir. Um avô almirante que eu nunca vi numa pose de 

leão dos mares para a fotografia (um cheiro a vaidade, que 

se perdoa tanto tempo depois,) o cheiro da catequista da 

igreja de S. Jorge de Arroios por quem eu estava

apaixonado, cheiro de castos lençóis, provavelmente os mesmos de
Camilo Pessanha. O cheiro de santidade, o cheiro de 

inveja que se desprende de certa gente malina e de certos lugares

aziago o cheiro a guarda-chuva molhado e abandonado 
como um
pássaro morto. O cheiro de flores apodrecidas
em 
amarelentos solitários. O cheiro a corpo queimado que 

anuncia a presença do demo esse que vem cheirar os cheiros

que são muito nossos para roubar a memória do que fomos

sendo nos laços e lacetes da existência.

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Alexandre O’Neill – “Dai-nos, meu Deus…”

07.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja.

Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja,
que o absurdo, mesmo em curtas doses,
defende da melancolia e nós somos tão propensos a ela!
Se é verdade o aforismo faca afia faca
(não sabemos falar senão figuradamente
sinal de que somos pouco capazes de abstracção).
Se faca afia faca,
então que a faca do absurdo
venha afiar a faca da nossa embotada vontade,
venha instalar-se sobre a lâmina do inesperado
e o dia a dia será nosso e diferente.
Aflições? Teremos muitas não haja dúvida.
Mas tudo será melhor que este dia a dia.
Os povos felizes não têm história, diz outro aforismo.
Mas nós não queremos ser um povo feliz.
Para isso bastam os suíços, os suecos, que sei eu?
Bom proveito lhes faça!
Nós queremos a maleita do suíno,
a noiva que vê fugir o noivo,
a mulher que vê fugir o marido,
o órfão que é entregue à caridade pública,
o doente de hospital ainda mais miserável que o hospital
onde está a tremer, a um canto, e ainda ninguém lhe ligou
nenhuma. Nós queremos ser o aleijado nas ruas, a pedir esmola, a
a

bardalhar-se frente aos nossos olhos. Queremos ser o pai


desempregado que não sabe que NatalDai-nos, meu Deus…
há-de dar aos seus.
Garanti-nos, meu Deus, um pequeno absurdo cada dia.
Um pequeno absurdo às vezes chega para salvar.

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João Penha – “A Carne”

21.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

João Penha (1838-1919) 
Poeta português, natural de Braga, também jurista e magistrado. Introduziu o parnasianismo em Portugal.

A CARNE
[A Cândido de Figueiredo]

Carne mimosa, carne cor de rosa
Nada mais sois, oh anjos, na poesia
Dos vates dissolutos de hoje em dia,
Nos romances de amor, hedionda prosa.

A vossa alma gentil, ideal, mimosa,
Nestas idades de descrença ímpia,
Como escondida, numa estátua fria
Sonha e não voa, de voar medrosa!

Anjos chorai o Amor! Com voz dolente
Dizei-lhe adeus! Bronco recife
Se apruma entre ele e vós, cruel, ingente:

Que par mais que de vinhos o borrife,
Ninguém gosta de ver, continuadamente,
Diante de si, fatal, o mesmo bife!

in “Novas Rimas”

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“A Origem da Noite”

21.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tupis, da Amazónia.

Antigamente, a noite não existia no céu. O dia era eterno. A noite dormia no fundo das águas. E os animais também não existiam, e os objectos falavam.
A filha da Grande Serpente casou com um homem, que tinha três criados fiéis. Ele disse-lhes uma vez: «Afastem-se, porque a minha mulher quer copular comigo.» Mas não era a presença dos criados que incomodava a jovem. Ela não queria fazer amor senão na escuridão. Explicou ao seu marido que o seu pai detinha a noite, e que ele devia enviar os seus criados buscá-la.
Quando estes chegaram, numa piroga, junto da Grande Serpente este deu-lhes uma noz de palmeira tucuman bem fechada, e recomendou-lhes que não a abrissem sob nenhum pretexto. Os criados voltaram a embarcar e, pouco depois, ficaram surpreendidos com um ruído que vinha do interior da noz: ten, ten ten, cri…ten, ten ten, cri, semelhante ao ruído que os grilos e as rãs fazem durante a noite. Um dos criados quis abrir a noz, mas os outros opuseram-se. Depois de muitas discussões, e quando já estavam muito longe da morada da Grande Serpente, reuniram-se finalmente no meio da piroga, fizeram uma pequena fogueira, e fizeram fundir a resina que mantinha a noz fechada.
Mal a noz se abriu, a noite surgiu, e todas as coisas que havia na floresta, se transformaram em quadrúpedes e pássaros, e todas as coisas que havia no rio, transformaram-se em patos e peixes. O cesto transformou-se em jaguar, o pescador e a sua piroga tornaram-se patos: na cabeça do homem surgiu um bico, a piroga tornou-se o corpo, os remos as patas…
A filha da Grande Serpente compreendeu a razão da obscuridade que reinava agora. Quando a estrela da manhã surgiu, a jovem decidiu separar a noite do dia. Para o conseguir, transformou duas bolas de fio nos pássaros curubim e inhambu (que anunciam a aurora). Para punir os criados, transformou-os em macacos.

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“A Origem da Terra e dos Homens”

20.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Povo Chukchees da América do Norte

Era o princípio dos tempos e da criação. Conhecida pelos seus maus humores, a mulher do Corvo pediu-lhe um dia que criasse a terra, ao que o Corvo protestou dizendo-se incapaz de tal feito. Enfurecida pelo facto de o marido não satisfazer de imediato o seu pedido, a mulher informou-o então que tentaria criar um «companheiro de mau humor» durante o sono e adormeceu. Durante a noite, o Corvo olhou para a sua esposa e notou que o seu abdómen tinha inchado de forma assustadora. Sem qualquer esforço, a mulher criou durante o sono um ser com o qual se uniu de imediato; o Corvo, assustado, virou o rosto e procurou não assistir ao espectáculo.
Na manhã seguinte, a mulher deu à luz dois gémeos, o primeiro casal de que toda a humanidade viria a descender. Envergonhado pela sua impotência criadora, o Corvo, enfurecido, afirmou: «Já criaste os homens, agora terei de criar a terra.» Lançou-se então num alto voo e batendo as asas começou a defecar. As fezes caíram então sobre as águas, incharam e transformaram-se em pedaços de terra que, uma vez juntos, deram origem à Terra. Assim, os homens receberam o lar onde viver.

Trad.: Manuel João Magalhães

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“A origem da terra, do trabalho e da gravidez”

19.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Povo Jugulares da Amazónia

Ainda a terra não existia e uma jovem virgem vivia sozinha no espaço vazio. Chamava-se Coadidop, a Avó dos Dias. Um dia, Coadidop resolveu fazer tabaco a partir do seu corpo; repousou-o sobre o chão, espremeu leite dos seus seios e fê-lo verter sobre o tabaco. Não só era o primeiro charuto do universo como era também a primeira das coisas criadas. Acendeu então o charuto e do fumo resultaram o raio e o trovão. Surgiu ainda a silhueta de um homem, mas desapareceu de imediato. Fumou de novo e a cena repetiu-se. Porém, ao terceiro charuto, o fumo transformou-se por fim num homem. Surpresa, Coadidop disse-lhe: «Es o filho do Trovão, és o Trovão; és o meu neto. Possuirás todos os poderes e farás o que quiseres. Chamar-te-ás Enu, o Trovão.» Acrescentou ainda que Enu, enquanto homem, deveria usar os seus poderes para criar para si uma multitude de companheiros.
Assim, Enu criou um homem do fumo do seu charuto, a quem resolveu chamar de filho e de irmão. Fumou outra vez e surgiram pela sua frente raios e trovões. Fumou uma outra vez e do fumo saíram outros dois homens, seus filhos e irmãos. Os Irmãos Trovão jun-taram-se e disseram à Virgem Avó dos Dias: «Nossa mãe, nossa mãe, nossa tia, faremos o que desejares.» Coadidop respondeu-lhes que, enquanto homens, não poderiam permanecer com ela. Pelo contrário, Coadidop necessitava de mulheres a seu lado. A Virgem acendeu então um charuto e criou a primeira mulher. Chamou-lhe Caiçaro e, insatisfeita com a companhia, acendeu outro charuto e criou uma terceira mulher. Havia agora quatro Trovões para três mulheres. Viviam todos juntos numa casa de pedra suspensa sob o firmamento.
Chegara a altura da primeira menstruação das três Virgens. Os Trovões, que mais não faziam senão fumar charutos e mascar coca, não percebiam a situação e tomavam as virgens por doentes. O Trovão mais novo dirigiu-se à Avó e perguntou-lhe o que fazer, ao que esta respondeu: «Tu és o último; o último de cada geração será sempre o mais sensato. Ensinar-te-ei a fazer um pari onde ficarei reclusa.» Passados alguns dias, as Virgens estavam recuperadas mas quei-xavam-se de fome. A Avó dos Dias disse-lhes que, de então em diante, a sua vida teria de mudar: «Vocês vão trabalhar e não vão ficar como os Trovões. Dar-vos-ei a terra e trabalhá-la-ão para que consigam dela os alimentos de que necessitarem.»
Coadidop pegou então numa corda e enrolou-a à volta da sua cabeça. Retirou depois a corda e pô-la no chão, desenhando assim um circulo sobre o qual lançou leite dos seus seios: nasceu deste gesto a terra. No dia seguinte, a Avó dos Dias ofereceu a terra às duas Virgens e disse: «Agora, trabalhai.» As mulheres desceram à terra mas os Trovões deixaram-se ficar pelo ar; só faziam trovoada.
As Virgens decidiram povoar a terra e os Trovões, invejosos, tentaram criar um quinto Trovão. Queriam engravidar e tt ntaram colocar a sua barriga nas pernas e nos braços. Porém, tal n.-o funcionou e as Virgens gozaram por vários dias com os Trovões, dizendo que eram loucos e feios. Feridos no seu orgulho, os trovões responderam: «Então deixem-nos a nós o trabalho e fiquem vocês com a gravidez.» E assim foi.

Trad.: Manuel João Magalhães

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