Leonor Nascimento – “Sonho Egípcio”
15.11.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Maria Leonor Nascimento nasceu em 1957, em Lisboa, de Mãe professora e Pai bancário e mestre de xadrez. Completou o curso de Engenharia Electrotécnica no IST , em 1981. Desde cedo estudou piano e começou a fazer poesia, tendo grande parte desta publicada no seu blogue "O Jardim de Aspásia".
15.11.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Hoje acordei egípcia
e só ando de lado,
função que com perícia,
pratico há um bocado.
Ando de tanga às riscas,
sandálias de bambu,
um colar de ametistas,
o resto… tudo a nu.
Ao meu pequeno-almoço,
sentada num tripé,
bebi chá de tremoço
e papas de rapé.
Enquanto meu abutre
cantava no quintal,
dei banho a Tot-A-Mut,
minha cobra coral.
Sentei-me numa esteira
a estudar hieroglifos,
mas deu-me uma soneira
e sonhei com três grifos.
Chegou o meu amante,
que me trouxe do Nilo
um colar de diamante
e unhas de crocodilo.
Chamámos dois felás
p´ra nos levarem, às costas,
a casa de Al-Faissaz,
comer umas lagostas,
e, para terminar,
e como era Domingo,
salada de nenúfar,
e um bife de flamingo!
Voltámos para a sesta,
até ao pôr-do-sol,
mas foi tamanha a festa,
rasgámos o lençol…
Acordámos, enfim,
e fomos, num repente,
dançar para o jardim,
uma Dança do Ventre!
À hora em que Amon-Rá
se põe lá em Gizé,
degustámos maná,
fumámos narguilé.
Rezámos a Osiris,
cantámos a Horus,
tomámos banho de íris,
tomilho e alcaçuz.
Pusemos os unguentos
que fazem delirar:
ele, sândalo bento,
eu, rosa e almíscar,
enquanto a serva núbia,
nos ia embalando,
uma ária da Aida
numa lira ensaiando…
E assim aperaltados
lá fomos p´ró banquete,
por Cleópatra chamados
– pois fazia dezassete
aninhos, a menina…
E levámos, de prenda,
um escravo, uma ocarina
e um soutien de renda
todo em crepe da China !!!
Aspásia 99
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15.11.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Se quiseres dedicar
uma estrofe à namorada,
se quiseres (en)levar
a sogra, o primo, a criada…
não tens mais que encomendar:
sou poetisa encartada,
versifico qualquer tema,
faço trova, ode ou poema,
rimo por tudo e por nada.
Faço versos a granel,
ao litro, ao metro, ao quilate,
ternos bolinhos de mel,
bravos galos de combate…
Numa folha de papel,
escrevo tese ou disparate,
em letrinhas de hidromel,
de cicuta ou erva-mate…
Peço a Lili p´ró Manel,
trato divórcio ou engate,
do velho faço donzel,
fel transformo em chocolate…
Da choupana faço hotel;
do albardeiro, alfaiate;
o tolo armo em bacharel,
o recruta em coronel,
e ao Rei… dou xeque-mate.
(Tenho encomendas a rodos,
não posso fazer mais nada…
Poetas querem ser todos
que é casta mui ilustrada…
E lá lhes mostro bons modos,
para aumentar a mesada
à custa dos meus engodos
de poesia alugada…)
Amigo, amiga, não esperes,
deixa o teu nome e morada,
irei ter onde estiveres,
com a caneta afiada…
Se dinheiro não tiveres,
aceito a alma empenhada,
se os versos não entenderes,
faço versão ilustrada…
Ponho em verso o que quiseres,
cativo homens e mulheres,
arranjo empregos, mesteres,…
e não pagas quase nada!…
Leonor 1998
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15.11.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Estava a sonhar, sabes?,
que éramos dois meninos aí da mesma idade,
de bibes azuis, joelhos esfolados,
e morávamos no mesmo bairro da grande cidade…
Um pouco tontos do sol da manhã,
brincávamos às escondidas e à apanhada
e lanchávamos, a meias, tarte de maçã.
Tu eras para o gorducho e pachorrento,
não eras assim lá muito de pressas…
e eu, magrizela e matreira,
ganhava quase sempre sem grandes chatices.
Então gostava de puxar-te os caracóis
e chamar-te “meu grande paspalhão”,
mas com um certo medo que tu descobrisses
que afinal já eras, entre os meus heróis,
o Principezinho do meu coração.
Às vezes, parecia que me olhavas desconfiado
com uns olhinhos doces por trás duns grandes óculos
e os caracóis colados à testa suada.
Aí, eu disfarçava, tirava o pente do bolso
e penteava-te dizendo: “Então que foi?”
E tu resmungavas: “Não foi nada. É do calor”,
com o teu arzinho sério e atrapalhado.
Então eu derretia, não tanto do calor,
talvez mais, se calhar,
da tua expressão de “homem cheio de azar”…
E murmurava-te ao ouvido, para te consolar,
a mais super-secreta declaração de amor:
“Deixa lá, meu pateta! Amanhã deixo-te ganhar.”
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