Nota biográfica

Gastão Santana Franco da Cruz (Faro, 20 de Julho de 1941) é um poeta, crítico literário e encenador português. Licenciou-se em Filologia Germânica pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi professor do ensino secundário e leitor de Português no King's College. Como poeta, o seu nome aparece inicialmente ligado à publicação colectiva Poesia 61

“Ofício”, poema de Gastão Cruz.

03.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Os poemas que não fiz não os fiz porque estava
dando ao meu corpo aquela espécie de alma
que não pôde a poesia nunca dar-lhe


Os poemas que fiz só os fiz porque estava
pedindo ao corpo aquela espécie de alma
que somente a poesia pode dar-lhe


Assim devolve o corpo a poesia
que se confunde com o duro sopro
de quem está vivo e às vezes não respira.


– Gastão Cruz, em “Escarpas”. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.

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“Livro do Desassossego – Fragmento” de Bernardo Soares.

02.12.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

O cansaço de todas as ilusões e de tudo que
há nas ilusões – a perda delas, a inutilidade de
as ter, o antecansaço de ter que as ter para
perdê-las, a mágoa de as ter tido, a vergonha
intelectual de as ter tido sabendo que teriam tal fim.
A consciência da inconsciência da vida é o
mais antigo imposto à inteligência. Há
inteligências inconscientes – brilhos do
espírito, correntes do entendimento, mistérios
e filosofias – que têm o mesmo automatismo
que os reflexos corpóreos, que a gestão que o
fígado e os rins fazem de suas secreções.

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“Cabo da Roca”, poema de Mário Castrim.

30.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Deste ponto do hotel vê-se qualquer coisa

que logo desde o início se entendeu

não poder ser outra coisa além do Cabo da Roca.

Daqui donde estou se vê que o Cabo é

perfeitamente ocidental o mais

ocidental possível.



Mais do que ele, só os nossos olhos.
Eles, para quem a terra não acaba nunca.

Eles, que tocam o ponto exacto onde

um sol de fogo prova que ela é redonda.
A única diferença é o farol. Mas se fores tu

de noite a olhar o mar, os barcos

podem ir à confiança.
Obrigado, Alice.

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“Andar? Não me custa nada.” poema de Natália Correia-

29.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Andar? Não me custa nada!…
Mas estes passos que dou
Vão alongando uma estrada
Que nem sequer começou.
Andar na noite?! Que importa?…
Não lenho medo da noite
Nem medo de me cansar;
Mas na estrada em que vou.
Passo sempre a mesma porta…
E começo a acreditar
No mau feitiço da estrada:
Que se ela não começou
Também não foi acabada!
Só sei que, neste destino,
Vou atrás do que não sei.
E já me sinto cansada
Dos passos que nunca dei.

em “Rio de Nuvens”

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“Poema para iludir a vida”, poema de Fernando Namora.

26.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tudo na vida está em esquecer o dia que passa.
Não importa que hoje seja qualquer coisa triste,
um cedro, areias, raízes,
ou asa de anjo
caída num paul.
O navio que passou além da barra
já não lembra a barra.
Tu o olhas nas estranhas águas que ele há-de sulcar
e nas estranhas gentes que o esperam em estranhos portos.

Hoje corre-te um rio dos olhos
e dos olhos arrancas limos e morcegos.
Ah, mas a tua vitória está em saber que não é hoje o fim

e que há certezas, firmes e belas,
que nem os olhos vesgos
podem negar.
Hoje é o dia de amanhã.

Fernando Namora, in “Mar de Sargaços”

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“Um fado palavras minhas”, poema de Pedro Támen.

25.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Palavras que disseste e já não dizes
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus e mais felizes
Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam
Palavras que dizias ,sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido
Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
– que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas

” Antologia Provisória”, ed. 1983

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“Horas Mortas”, poema de Florbela Espanca.

24.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Horas mortas… Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido… e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção duma fonte!

E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!

Árvores! Corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!

Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
– Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!

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“Larva”, poema de Herberto Hélder

23.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Pelo tempo chamado do Outono,
quando a beleza é mais oculta e calma
e na face das coisas pesa o sono
das águas do desejo, fecho a alma
e fico sem estrelas e sem nome.
Humilde, vou tecendo meu destino
futuro de palavras e de fome.
Nesse tempo do Outono meu latino
esplendor é uma cinza paciente.
Meu espírito, um lago verde. Quente,
porém, a gota que leveda ao fundo
do silêncio. Depois serei o Dia,
e com poemas e sangue e alegria
nascerei, incontido, sobre o mundo!…

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“Lua Adversa”, poema de Cecília Meireles.

22.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Tenho fases, como a lua,
Fases de andar escondida,
fases de vir para a rua…
Perdição da minha vida!
Perdição da vida minha!
Tenho fases de ser tua,
tenho outras de ser sozinha.
Fases que vão e que vêm,
no secreto calendário
que um astrólogo arbitrário
inventou para meu uso.
E roda a melancolia
seu interminável fuso!
Não me encontro com ninguém
(tenho fases, como a lua…).
No dia de alguém ser meu
não é dia de eu ser sua…
E, quando chega esse dia,
o outro desapareceu…

Cecília Meireles , in ‘Vaga Música’

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“Linha para um retrato…”, poema de Eduíno de Jesus.

19.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Este poema é das saudades e do sol-posto.

E da procissão do Senhor, de colchas nas varandas.

E de quando eu tinha as mãos postas

que a minha mãe veio e me pôs umas asas brancas.



E das horas gastas esperando o teu regresso.

E das idas clandestinas e do caminho andado.

E da janela, aberta para os muros, que enchia

de sombras as recordações do meu quarto.


Este poema é dos vidros partidos

pelas pedras que atirei aos meus amigos

nos combates havidos nas travessas.


E da chuva que caiu nas colchas das varandas.

E das mãos que vieram tirar-me as asas brancas.

E dos olhos de minha mãe, quando eu parti para 
longes terras…

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“Os Gatos”, poema de Manuel António Pina.

18.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Há um deus único e secreto
em cada gato inconcreto
governando um mundo efémero
onde estamos de passagem
Um deus que nos hospeda
nos seus vastos aposentos
de nervos, ausências, pressentimentos,
e de longe nos observa
Somos intrusos, bárbaros amigáveis
e compassivo o deus
permite que o sirvamos
e a ilusão de que o tocamos

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“Ladainha dos póstumos Natais” de David Mourão-Ferreira.

17.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

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“As putas da Avenida”, poema de Fernando Assis Pacheco.

16.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Eu vi gelar as putas da Avenida
ao griso de Janeiro e tive pena
do que elas chamam em jargão a vida
com um requebro triste de açucena

vi-as às duas e às três falando
como se fala antes de entrar em cena
o gesto já compondo à voz de mando
do director fatal que lhes ordena

essa pose de flor recém-cortada
que para as mais batidas não é nada
senão fingirem lírios da Lorena

mas a todas o griso ia aturdindo
e eu que do trabalho vinha vindo
calçando as luvas senti tanta pena

(in ‘Variações em Sousa”)

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“Sensibilidade”, poema de João José Cochofel.

15.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Que sensibilidade me sobe
da passada adolescência?
Que agudeza dos sentidos
me perturba a consciência?

Surge do desencanto
um mundo a que me abandono.
Tranquilo e caricioso
como um sol de Outono.

A cor, a luz, as formas,
sinto-as de coração novo!
Em tudo desconheço
uma experiência que renovo.

Como quem sai
duma longa doença,
deslumbrado e comovido
pela convalescença.

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“Poema 27.o” poema de Joaquim Pessoa.

12.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

A vida. Com que palavras a dizes ou a negas?

Com que palavras te entregas?

Nasceste do ovo azul da linguagem,

essa que te beijou a pele e beijará teus olhos.

A tua voz é a voz das palavras.

Mas já foi a voz dos frutos e do chão.

Das espigas e das rosas. A que um dia poisou na fala

e se derrama agora na solidão da página.

A vida continua a torturar-te com palavras

acendendo fogueiras, encenando novos

autos de fé, finos rastos de fria dignidade.

É feito de pedacinhos de sílabas o teu rosto

São restos de poemas, dor que ainda sorri

à luz que acena dentro dos abraços.

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“Retrato do Herói” poema de Ary dos Santos.

11.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Herói é quem num muro branco inscreve
O fogo da palavra que o liberta:
Sangue do homem novo que diz povo
e morre devagar de morte certa.


Homem é quem anónimo por leve
lhe ser o nome próprio traz aberta
a alma à fome fechado o corpo ao breve
instante em que a denúncia fica alerta.


Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo nem mártir nem soldado
Mas apenas por último indefeso.


Homem é quem tombando apavorado
dá o sangue ao futuro e fica ileso
pois lutando apagado morre aceso.


em ‘Fotosgrafias’


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“Libertação”, poema de David Mourão-Ferreira.

09.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Fui à praia, e vi nos limos
a nossa vida enredada:
ó meu amor, se fugimos,
ninguém saberá de nada.

Na esquina de cada rua,
uma sombra nos espreita,
e nos olhares se insinua,
de repente uma suspeita.

Fui ao campo, e vi os ramos
decepados e torcidos:
ó meu amor, se ficamos,
pobres dos nossos sentidos.

Hão-de transformar o mar
deste amor numa lagoa:
e de lodo hão-de a cercar,
porque o mundo não perdoa.

Em tudo vejo fronteiras,
fronteiras ao nosso amor.
Longe daqui, onde queiras,
a vida será maior.

Nem as esperanças do céu
me conseguem demover
Este amor é teu e meu:
só na terra o queremos ter

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“Velhice” poema de Alberto d’Oliveira.

08.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Água do rio Letes, onde passas?
Venha a mim o teu curso benfazejo
Que sepulta alegrias ou desgraças
No mesmo esquecimento sem desejo.

Quero beber-te por contínuas taças…
E às horas do passado que revejo,
Pedir-te que as afogues e desfaças
Na carícia e na esmola do teu beijo!

Quem de si nunca esteve satisfeito
E com novas empresas só procura
Corrigir seu engano ou seu defeito,


Não pode recordar sem amargura
Que a mais nenhum esforço tem direito
Na ruína presente e na futura…


Alberto de Oliveira, in “Novos Sonetos”

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Um poema sem título de Nadine Stair.

05.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Se pudesse voltar a viver a minha vida,
da próxima vez gostava de fazer mais erros.
Descontraía. Fazia mais disparates.
Levaria menos coisas a sério.
Corria mais riscos. Acreditava mais.
Subia mais montanhas e nadava em mais rios.
Convidava os amigos mesmo que tivesse nódoas
na carpete.
Usava a vela em forma de rosa antes de ela se
estragar no armário,
Sentava-me na relva com os meus filhos
sem me preocupar com as manchas verdes na roupa.
Tinha rido e chorado menos em frente da televisão
e mais em frente da vida.
Tinha contado mais anedotas e visto
o lado cómico das coisas.
Tinha descoberto menos dramas em cada esquina,
e inventado mais aventuras.
Se calhar, tinha mais problemas reais,
mas menos problemas imaginários.
É que, sabem, sou uma dessas pessoas que vive
com sensibilidade e sanidade hora após hora,
dia após dia.



Oh, tive os meus momentos,
e se pudesse fazer tudo de novo, outra vez,
tinha muitos mais.
De facto, não tentaria mais nada.
Apenas momentos, uns após outros,
em vez de viver tantos anos à frente de cada dia.
Fui uma dessas pessoas que nunca foi a lado nenhum
sem um termómetro, botija de água quente, casaco para
a chuva e pára-quedas.
Se pudesse fazer tudo outra vez, viajava mais leve do que viajei.
Se tivesse a minha vida para viver de novo,
começava mais cedo a andar descalça na Primavera,
e ficava sempre assim, mesmo mais tarde, no Outono.
Ia a mais bailes.
Cantava muitas mais canções.
Diria muitos mais «amo-te» e «desculpa».
E apanharia mais papoilas.”

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“Senhor, de que valeu o sacrifício?”, poema de Álvaro Feijó.

04.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quantos desejam, Senhor,
na calma de uns seios brandos
ter sonhos e ter amor…

Os que mendigam na vida
anseiam por ser meninos
e aninhar-se
— depois da faina de um dia, cansados já de ser homens —
junto dos seios de alguém.

Senhor! De que valeu o sacrifício,
se os seios não se abriram
nem se deram a ninguém!

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“É urgente o amor”, poema de Eugénio de Andrade.

03.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.

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“Aqui” de Fernando Pessoa.

01.11.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar,

Farei um sonho, terei meu dia, fecharei a vida,

E nunca terei agonia, pois dormirei de seguida.

A vida é como uma sombra que passa por sobre um rio

Ou como um passo na alfombra de um quarto que jaz vazio;

O amor é um sono que chega para o pouco ser que se é;

A glória concede e nega; não tem verdades a fé.

Por isso na orla morena da praia calada e só,

Tenho a alma feita pequena, livre de mágoa e de dó;

Sonho sem quase já ser, perco sem nunca ter tido,

E comecei a morrer muito antes de ter vivido.

Dêem-me, onde aqui jazo, só uma brisa que passe,

Não quero nada do acaso, senão a brisa na face;

Dêem-me um vago amor de quanto nunca terei,

Não quero gozo nem dor, não quero vida nem lei.

Só, no silêncio cercado pelo som brusco do mar,

Quero dormir sossegado, sem nada que desejar,

Quero dormir na distância de um ser que nunca foi seu,

Tocado do ar sem fragrância da brisa de qualquer céu.

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“Nestes Últimos Tempos”de Sophia de Mello B. Andresen.

29.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nestes últimos tempos é certo a esquerda fez erros
Caiu em desmandos confusões praticou injustiças

Mas que diremos da longa tenebrosa e perita
Degradação das coisas que a direita pratica?

Que diremos do lixo do seu luxo —  de seu
Viscoso gozo da nata da vida — que diremos
De sua feroz ganância e fria possessão?

Que diremos da sua sábia e tácita injustiça
Que diremos de seus conluios e negócios
E do utilitário uso dos seus ócios?

Que diremos de suas máscaras álibis e pretextos
De suas fintas labirintos e contextos?

Nestes últimos tempos é certo a esquerda muita vez
Desfigurou as linhas do seu rosto

Mas que diremos da meticulosa eficaz expedita
Degradação da vida que a direita pratica?

(Julho de 1976 – Edição “o nome das coisas”-caminho 2004)

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“Ave da Esperança”, poema de Miguel Torga.

28.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Passo a noite a sonhar o amanhecer.
Sou a ave da esperança.
Pássaro triste que na luz do sol
Aquece as alegrias do futuro,
O tempo que há-de vir sem este muro
De silêncio e negrura
A cercá-lo de medo e de espessura
Maciça e tumular;
O tempo que há-de vir – esse desejo
Com asas, primavera e liberdade;
Tempo que ninguém há-de
Corromper
Com palavras de amor, que são a morte
Antes de se morrer.



(in Penas do Purgatório)

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“Ilha”, poema de David Mourão-Ferreira.

27.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Deitada és uma ilha E raramente
surgem ilhas no mar tão alongadas
com tão prometedoras enseadas
um só bosque no meio florescente

promontórios a pique e de repente
na luz de duas gémeas madrugadas
o fulgor das colinas acordadas
o pasmo da planície adolescente

Deitada és uma ilha Que percorro
descobrindo-lhe as zonas mais sombrias
Mas nem sabes se grito por socorro

ou se te mostro só que me inebrias
Amiga amor amante amada eu morro
da vida que me dás todos os dias

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“Retrato velho”, poema de Mário Castrim.

26.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

No retrato velho hoje cinzento
estava toda a família reunida.
– Este aqui és tu…
Este tu era eu – três anos, caracóis, calções, 

colete, botas.
Este sou eu.
É preciso guardar as provas. Os documentos.
Se um dia me fecharem as cancelas e
não me deixarem passar, aponto logo:
– Este sou eu.

Passe – dirá o guarda que deve haver

na eternidade – e boa viagem, sim?
– Claro – dirá o menino
que entretanto busca em mim
as sete diferenças
como costuma fazer no desenho
do suplemento do jornal.

(Poema inédito publicado no Facebook
por Alice Vieira, viúva do poeta há 18 anos)

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“O teu retrato”, poema de António Nobre.

25.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Deus fez a noite com o teu olhar,
Deus fez as ondas com os teus cabelos;
Com a tua coragem fez castelos
Que pôs, como defesa, à beira-mar.

Com um sorriso teu, fez o luar
(Que é sorriso de noite, ao viandante)
E eu que andava pelo mundo, errante,
Já não ando perdido em alto-mar!

Do céu de Portugal fez a tua alma!
E ao ver-te sempre assim, tão pura e calma,
Da minha Noite, eu fiz a Claridade!

Ó meu anjo de luz e de esperança,
Será em ti afinal que descansa
O triste fim da minha mocidade!

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“Os meus versos” poema de Florbela Espanca.

22.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Rasga esses versos que eu te fiz, amor!
Deita-os ao nada, ao pó, ao esquecimento,
Que a cinza os cubra, que os arraste o vento,
Que a tempestade os leve aonde for!

Rasga-os na mente, se os souberes de cor,
Que volte ao nada o nada de um momento!
Julguei-me grande pelo sentimento,
E pelo orgulho ainda sou maior!…

Tanto verso já disse o que eu sonhei!
Tantos penaram já o que eu penei!
Asas que passam, todo o mundo as sente..

Rasgas os meus versos… Pobre endoidecida!
Como se um grande amor cá nesta vida
Não fosse o mesmo amor de toda a gente!…

In: “A Mensageira das Violetas”

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“Elegia”, poema de Alberto Pimenta.

21.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

já nada é o que era
e provavelmente nunca mais o será
e mesmo que o fosse
algo me diz que já não seria o que era
porque o que era
era o que era por ser o que era
do que eu me lembro muito bem
embora eu então não fosse o que agora sou
mas o que agora sou
ou estou a ser
é deixar de ser o que sou
porque eu sou deixando de ser
deixar de ser é a minha maneira de ser
sou em cada instante
o que já não sou
e o mesmo se deve passar com tudo o que é
motivo por que não admira que assim seja
quer dizer
que nada seja o que era
e se assim é
ou já não é
seja ou não seja

Alberto Pimenta, in ‘Ascensão de Dez Gostos à Boca’

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“Orgulho” de Fernanda de Castro.

20.10.2021 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nada quero da vida ambicionada
por quantos me rodeiam nesta vida
Nem riqueza, nem glória desmedida
Perguntam-me o que tenho: estou cansada.

Vencida de cabeça levantada,
orgulho sem limites de vencida.
Eu sou bem criada, a bem nascida,
a que deu tudo e nunca pediu nada.

Nada espero da vida nem da morte.
Vergada ao peso de uma alma forte,
cá vou calando angústias e cansaços,

mas que longos, às vezes, são os dias
e como pesam duas mãos vazias
e que desertos cabem nos meus braços!

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