Nota biográfica

Poeta moçambicano, Rui Knopfli nasceu em 1932, em Inhambane, Moçambique, e faleceu em 1997.

Rui Knopfi – “Testamento”

29.03.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar

Se por acaso morrer durante o sono
não quero que te preocupes inutilmente.
Será apenas uma noite sucedendo-se
a outra noite interminavelmente.

Se a doença me tolher na cama
e a morte aí me for buscar,
beija Amor, com a força de quem ama,
estes olhos cansados, no último instante.

Se, pela triste monotonia do entardecer,
me encontrarem estendido e morto,
quero que me venhas ver
e tocar o frio e sangue do corpo.

Se, pelo contrário, morrer na guerra
e ficar perdido no gelo de qualquer Coreia,
quero que saibas, Amor, quero que saibas,
pelo cérebro rebentado, pela seca veia,
pela pólvora e pelas balas entranhadas
na dura carne gelada,
que morri sim, que me não repito,
mas que ecoo inteiro na força do meu grito.

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João de Deus – “O Avarento”

13.03.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar

Puxando um avarento de um pataco

Para pagar a tampa de um buraco

Que tinha já nas abas do casaco.

Levanta os olhos, vê o céu opaco,

Revira-os fulo e dá com um macaco

Defronte, numa loja de tabaco 

(Que lhe fazia muito mal ao caco…).

Diz ele então

Na força da paixão:

Há casaco melhor que aquela pele? 

Trocava o meu casaco por aquele…
E até a mim… por ele.

Tinha razão,

Quanto a mim.

Quem não tem coração.

Quem não tem alma de satisfazer 

As niquices da civilização 

Homem não deve ser;

Seja saguim,

Que escusa tanga, escusa langotim: 

Vá para os matos,

Já não sofre tratos 

A calçar botas, a comprar sapatos; 

Viva nas tocas como os nossos ratos, 

E coma cocos, que são mais baratos.

(in “Campo de Flores”, Edição de Jardins-Escola João de Deus.
Nota introdutória de António Ponces de Carvalho, bisneto do Poeta)

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Casimiro de Brito – “Nu”

04.05.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar

nu

Nu, na minha cama de hotel,
deixo-me invadir pela memória do mel.
E choro. Choro porque não posso beber
as tuas lágrimas. Choro
porque não podes lamber
o meu sal.

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Luis Filipe Castro Mendes – “A Eugénio de Andrade depois de ler…”

11.12.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

francisco_simoes

A Eugénio de Andrade depois de ler “Os lugares do Lume”

Entre os lugares do lume acontecia que
a tua voz as músicas movia

e era outra paisagem de repente a
levantar-se como sarça ardente,

como se os prisioneiros da linguagem se
tornassem só lume, só passagem

e na terra que foi melancolia
ardesse a voz inteira da poesia.

(Mas nos lugares do lume que disseste
um pur si muove brilha e aparece.)

Poema de Luís Filipe Casreo Mendes, ilustração de Francisco Simões, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.

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José Fernandes Fafe – “A Eugénio de Andrade…”

08.12.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

mario_botas

A Eugénio de Andrade, agradecendo “Até Amanhã”

Lembras-te da primeira vigília que fizeste,
à espera, trémulo, da madrugada nova?

Deu o meio-dia, tilintava o oiro, e
anoiteceu-nos como se a nossa amada
fosse a descer à cova.

Depois, tu esperaste sempre a
madrugada, mas sempre a noite paria
nados-mortos, sempre a esperança
espancada cada dia: frágil, de luz e de
cristal, a tua fé embaciou-se de
melancolia…

Mas tu esperas ainda – porque os
teus versos ainda são os do rapaz
maravilhado pela afogueada cor
duma romã.
E vem dele a saúde a quem se cruza
contigo, no branco litoral: «Até
amanhã».

Poema de José Fernandes Fafe, ilustração de Mário Botas, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.

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Filinto Elísio – “Nasci – Logo a meus pais custou dinheiro”

11.02.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

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Nasci – logo a meus pais custou dinheiro
o baptismo, que Deus nos dá de graça.
Tive uso de razão – perdi a graça –
dei-me ao rol – chegou a Páscoa – dei dinheiro.

Quis casar com uma moça – mais dinheiro.
Brinquei com ela – não brinquei de graça: que aos
nove meses me custou a graça para o
Mergulhador capa e dinheiro.

Morreu minha mulher – não lhe achei graça e
menos graça no arbitral dinheiro da oferta; que o
prior não vai de graça.

Se o ser cristão requer sempre dinheiro,
como cumprem com dar graças de graça os
que as graças nos vendem por dinheiro?

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