“Amor como em casa”, poema de Manuel António Pina.
24.12.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Manuel António Pina (Sabugal, 18 de Novembro de 1943 – Porto, 19 de Outubro de 2012) foi um jornalista e escritor português, galardoado em 2011 com o Prémio Camões.
24.12.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa,
compro um livro, entro no
amor como em casa.
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03.11.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
É já saudade a vela, além.
Serena, a música esvoaça
na tarde calma, plúmbea, baça,
onde a tristeza se contém.
os pares deslizam embrulhados
de sonhos em dobras inefáveis.
(Ó deuses lúbricos, ousáveis
erguer, então, na tarde morta
a eterna ronda de pecados
que ia bater de porta em porta.)
E ao ritmo túmido do canto
na solidão rubra da messe,
deixo correr o sal e o pranto
– subtil e magoado encanto
que o rosto núbil me envelhece.
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02.11.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
No coração da ilha está um vaso
Cheio das pérolas que p’ra mim sonhaste,
Ó mãe completa da manhã ao ocaso,
Pastora dos meus sonhos, minha haste.
Parti p’rás Índias do meu estranho caso
—ó danos que dos versos sois o engate!—
E com maus fados se entendem ao acaso
Lírios e feras do meu vão contraste.
Ave exausta, o retorno quem me dera,
Vou no canta dos órfãos soletrando
O âmbar da manhã que ali me espera.
Feridas asas, enfim ali fechando
Ao pasto e á onda me unirei sincera,
Ilha no manso azul de mãe esperando.
Antologia Poética
Publicações Dom Quixote
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01.11.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Tu lhes dirás, meu amor, que nós não existimos.
Que nascemos da noite, das árvores, das nuvens.
Que viemos, amámos, pecámos e partimos
Como a água das chuvas.
Tu lhes dirás, meu amor, que ambos nos sorrimos
Do que dizem e pensam
E que a nossa aventura,
E no vento que passa que a ouvimos,
E no nosso silêncio que perdura.
Tu lhes dirás, meu amor, que nós não falaremos
E que enterrámos vivo o fogo que nos queima.
Tu lhes dirás, meu amor, se for preciso,
Que nos espreguiçaremos na fogueira.
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31.10.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
A meu favor tenho o teu olhar
testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.
E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.
Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.
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28.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Deixei-te só , à hora de morrer.
Não percebi o desabrigado apelo dos teus olhos
Humaníssimos, suaves, sábios, cheios de
aceitação De tudo… e apesar disso, sem o pedir,
tentando Insinuar que eu ficasse perto,
Que, se me fosse, a mesma era a tua gratidão.
Não percebi a evidência de que ias morrer
E gostavas da minha companhia por uma noite,
Que te seria tão doce a minha simples presença
Só umas horas, poucas.
Não percebi, por minha grosseira incompreensão,
Não percebi, por tua mansidão e humildade,
Que já tinhas perdoado tudo à vida
E começavas a debater-te na maior angústia,
a debater-te
Com a morte.
E deixei-te só , à beira da agonia, tão
aflito, tão
só e
sossegado.
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27.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Qualquer coisa de paz. Talvez somente
a maneira de a luz a concentrar
no volume, que a deixa, inteira, assente
na gravidade interior de estar.
Qualquer coisa de paz. Ou, simplesmente,
uma ausência de si, quase lunar,
que iluminasse o peso. E a corrente
de estar por dentro do peso a gravitar.
Ou planalto de vento. Milenária
semeadura de meditação
expondo à intempérie a sua área
de esquecimento. Aonde a solidão,
a pesar sobre si, quase que arruína
a luz da fronte onde a atenção domina.
Fernando Echevarría, in “Figuras”
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23.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Farto de sol e de areia
Que é o mais que a terra dá,
Tomasinho Cara-Feia
vai prá pesca da baleia.
Quem sabe se tornará?
Torne ou não torne, que tem?
Vai cumprir o seu destino.
Só nha Fortunata, a mãe,
Que é velha e não tem ninguém,
Chora pelo seu menino.
Torne ou não torne, que importa?
Vai ser igual ao avô.
Não volta a bater-me à porta;
Deixou para sempre a horta,
que a longa seca matou.
Tomasinho Cara-Feia
(outro nome, quem lho dá?),
farto de sol e de areia,
foi prá pesca da baleia.
— E nunca mais voltará
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22.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Tudo quanto sonhei tenho perdido
Antes de o ter.
Um verso ao menos fique do inobtido,
Música de perder.
Pobre criança a quem não deram nada,
Choras? É em vão.
Como tu choro à beira da erma estrada.
Perdi o coração.
A ti talvez, que não te têm dado,
Darão enfim…
A mim… Sei eu que duro e inato fado
Me espera de mim?
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21.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Deu tempo para lembrar tudo
enquanto o meu corpo embatia no chão.
Desde o primeiro olhar fresco que trocámos
até à ausência mútua,
revivi e desvivi, nesse instante.
Com os ossos a desistirem de resistir ao encontro
[com o chão suave que me abraçava
[e a dor/prazer/tu a começar a sentir-se.
Morri aos pedaços quando a queda acabou, quando
[todo eu me apaguei contra o teu peito.
[Deu tempo para um pensamento.
O amor ou a tua mão, pergunto-me com qual
[me abandonaste primeiro.
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16.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Hoje proíbo as rosas de nascerem diante de mim!
Proibo as deusas de dançarem nos olhos
das crianças! Proibo os corpos das mulheres de terem
outro
destino que a morte!
Sim, proibo!
E (baixinho, em sonho) aos gritos no mundo ordeno
aos homens
que
venham para a rua descalços
para sentirem nos pés nus
o silêncio da terra
– e o terror de viverem num planeta
onde os fuzilados não ressuscitam,
nem os malmequeres protestam com flores de luto
contra este sol que continua a fabricar primaveras
mecânicas e este cheiro tão bom a mulheres novas
nas árvores
com cio
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14.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
A frouxidão no amor é uma ofensa,
Ofensa que se eleva a grau supremo;
Paixão requer paixão, fervor e extremo;
Com extremo e fervor se recompensa.
Vê qual sou, vê qual és, vê que diferença!
Eu descoro, eu praguejo, eu ardo, eu gemo;
Eu choro, eu desespero, eu clamo, eu tremo;
Em sombras a razão se me condensa.
Tu só tens gratidão, só tens brandura,
E antes que um coração pouco amoroso
Quisera ver-te uma alma ingrata e dura.
Talvez me enfadaria aspecto iroso,
Mas de teu peito a lânguida ternura
Tem-me cativo e não me faz ditoso.
em “Citações e Pensamentos de Bocage”
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13.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.
Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.
A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.
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12.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Horas mortas … Curvada aos pés do Monte
A planície é um brasido … e, torturadas,
As árvores sangrentas, revoltadas,
Gritam a Deus a bênção de uma fonte!
E quando, manhã alta, o sol posponte
A oiro a giesta, a arder, pelas estradas,
Esfíngicas, recortam desgrenhadas
Os trágicos perfis no horizonte!
Árvores, corações, almas que choram,
Almas iguais à minha, almas que imploram
Em vão remédio para tanta mágoa!
Árvores! Não choreis! Olhai e vede:
Também ando a gritar, morta de sede,
Pedindo a Deus a minha gota de água!
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09.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Uma mulher de carne azul, semeadora de
luzes e de transes, atravessou o vidro
e veio, voadora
sentar-se ao meu colo
na nudez reclinada
dum desdém de espelhos.
(Mas que bom! Ninguém suspeita
que levo uma mulher nua nos joelhos.)
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08.09.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Noite única noite singular impressa
consagração das chuvas e das flores violadas
dos pássaros algemados pela fuga
dos silêncios nus prostituídos
das alcachofras indecisas alcachofras em
sangue das turbinas de aço onde as estrelas
escorrem
crescem árvores mais definitivas pálpebras
trémulas da noite
é o muro que eu recrio a cal sem vazios diários
todos de verdade nós todos férteis salvos
todos veias claras nós sementes
nós o susto fecundo de vivermos
nós os números e as letras e os desenhos
ah matem-me de noite punhais híbridos
sentinela das fronteiras extintas sentinela
última da noite
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10.08.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
“Invisível a meus olhos,
Trago-te sempre no coração
Te envio um adeus feito paixão
E lágrimas de pena com insónia.
Inventaste como possuir-me
E eu, o indomável, que submisso vou
ficando! Meu desejo é estar contigo sempre
Oxalá se realize tal desejo!
Assegura-me que o juramento que nos une
Nunca a distância o fará quebrar.
Doce é o nome que é o teu
E aqui fica escrito no poema: Itimad.”
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29.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Quem vende a verdade, e a que esquina?
Quem dá a hortelã com que temperá-la?
Quem traz para casa a menina
E arruma as jarras da sala?
Quem interroga os baluartes
E conhece o nome dos navios?
Dividi o meu estudo inteiro em partes
E os títulos dos capítulos são vazios…
Meu pobre conhecimento ligeiro,
Andas buscando o estandarte eloquente
Da filarmónica de um Barreiro
Para que não há barco nem gente.
Tapeçarias de parte nenhuma
Quadros virados contra a parede…
Ninguém conhece, ninguém arruma
Ninguém dá nem pede.
Ó coração epitélico e macio,
Colcha de croché do anseio morto,
Grande prolixidade do navio
Que existe só para nunca chegar ao porto.
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28.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Se os que me viram já cheia de graça
Olharem bem de frente para mim,
Talvez, cheios de dor, digam assim:
“Já ela é velha! Como o tempo passa!…”
Não sei rir e cantar por mais que faça!
Ó minhas mãos talhadas em marfim,
Deixem esse fio d’oiro que esvoaça!
Deixem correr a vida até ao fim!
Tenho vinte e três anos! Sou velhinha!
Tenho cabelos brancos e sou crente…
Já murmuro orações… falo sozinha…
E o bando cor-de-rosa dos carinhos
Que tu me fazes, olho-os indulgente.
Como se fosse um bando de netinhos
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27.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.
Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.
De mãos é cada flor, cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.
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26.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Eu quis um violino no telhado
e uma arara exótica no banho.
Eu quis uma toalha de brocado
e um pavão real do meu tamanho.
Eu quis todos os cheiros do pecado
e toda a santidade que não tenho.
Eu quis uma pintura aos pés da cama
infinita de azul e perspectiva.
Eu quis ouvir ouvir a história de Mira Burana
na hora da orgia prometida.
Eu quis uma opulência de sultana
e a miséria amarga da mendiga.
Eu quis um vinho feito de medronho
de veneno, de beijos, de suspiros.
Eu quis a morte de viver dum sonho
eu quis a sorte de morrer dum tiro.
Eu quis chorar por ti durante o sono
eu quis ao acordar fugir contigo.
Mas tudo o que é excessivo é muito pouco.
Por isso fiquei só, com o meu corpo.
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25.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
De repente do riso fez-se pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.
Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.
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22.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
O brinco da tua orelha
Sempre se vai meneando; Gostava de dar um
beijo
Onde o teu brinco o vai dando. Tem um
topázio dourado
Esse brinco de platina;
Um rubi muito encarnado
E uma outra pedra fina.
O que eu sofro quando o vejo Sempre airoso,
meneando! Dava tudo por um bejo
Onde o teu brinco os vai dando
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21.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
“Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?”
“Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?”
“Muita coisa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras coisas.
De memórias e de saudades
E de coisas que nunca foram.
“Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.”
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20.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Quando distanciar-me das altas
nuvens, onde sempre habitei,
devo levar algumas delas
para que saibam minha pátria.
Após soltar de espaço a espaço
as cascas vivas da memória,
devo levar para a cidade
o corpo, esta palavra forte.
Só meu corpo vai realmente
pisar nos jardins e nos pátios
e com mãos novas sacudir
as grandes árvores por perto.
Vou conduzi-lo com o cuidado
de livro muito alvo na tarde:
É minha única esperança
de estar bem vivo entre vocês.
Só meu corpo sabe virar
todas as páginas do tempo
e só ele foi publicado
completo, para ser seguido.
Alberto Cunha Melo, Poesia completa
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19.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
NÃO GOSTO tanto
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito dos seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
de livro e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever
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18.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
É por dentro de um homem que se ouve
o tom mais alto que tiver a vida
a glória de cantar que tudo move
a força de viver enraivecida.
Num palácio de sons erguem-se as traves
que seguram o tecto da alegria
pedras que são ao mesmo tempo as aves
mais livres que voaram na poesia.
Para o alto se voltam as volutas
hieráticas sagradas impolutas
dos sons que surgem rangem e se somem.
Mas de baixo é que irrompem absolutas
as humanas palavras resolutas.
Por deus não basta. É mais preciso o Homem.
Ary dos Santos, in ‘O Sangue das Palavras’
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15.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Deu agora meio-dia; o sol é quente
Beijando a urze triste dos outeiros.
Nas ravinas do monte andam ceifeiros,
Na faina, alegres, desde o sol nascente.
Cantam as raparigas meigamente.
Brilham os olhos negros, feiticeiros.
E há perfis delicados e trigueiros
Entre as altas espigas d’oiro ardente.
A terra prende aos dedos sensuais
A cabeleira loira dos trigais
Sob a bênção dulcíssima dos céus.
Há gritos arrastados de cantigas…
E eu sou uma daquelas raparigas…
E tu passas e dizes: «Salve-os Deus!»
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14.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Será assim, amiga: um certo dia
Estando nós a contemplar o poente
Sentiremos no rosto, de repente
O beijo leve de uma aragem fria.
Tu me olharás silenciosamente
E eu te olharei também, com nostalgia
E partiremos, tontos de poesia
Para a porta de treva aberta em frente.
Ao transpor as fronteiras do Segredo
Eu, calmo, te direi: – Não tenhas medo
E tu, tranquila, me dirás: – Sê forte.
E como dois antigos namorados
Noturnamente triste e enlaçados
Nós entraremos nos jardins da morte.
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13.07.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.
Há cidades acesas cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.
E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.
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