“O general no seu labirinto”, de Gabriel García Márquez
04.06.2014
“O general no seu labirinto”, é uma obra de Gabriel García Márquez, retratando os últimos dias do General Simón Bolívar – O Libertador. O general é apresentado como doente, enfraquecido, embora portador de um passado deveras poderoso e cheio de glória. Seu corpo físico está morrendo, mas seu espírito mostra-se enérgico. Acompanhado de José Palácios, mordomo fiel a servi-lo sem questionar suas ordens, parte da Venezuela rumo à Europa, para deixar finalmente sua pátria. Após muito fugir do povo (uns o chamam de volta ao poder, outros o injuriam), do tempo, e de si mesmo, abandona esta vida rodeado de fiéis companheiros de guerra e de vida.
José Palácios, o seu servidor mais antigo, encontrou-o a flutuar nas águas depurativas da banheira, nu e com os olhos abertos, e julgou que se tinha afogado. Sabia que aquela era uma das suas muitas formas de meditar, mas o estado de êxtase em que jazia à deriva parecia o de alguém que já não era deste mundo. Não se atreveu a aproximar-se, mas chamou-o em voz baixa de acordo com a ordem de o acordar antes das cinco horas para viajar com as primeiras luzes. O general emergiu do encantamento, e viu na penumbra os olhos azuis e diáfanos, o cabelo encrespado cor de esquilo, a majestade impávida do seu mordomo de todos os dias segurando na mão a xícara com a infusão de papoilas com goma. O general agarrou-se sem forças às pegas da banheira, e surgiu das águas medicinais com um ímpeto de golfinho que não era de esperar num corpo tão enfezado.
— Vamos — disse. — Voando, que aqui ninguém nos quer.
José Palácios tinha-o ouvido dizer isto tantas vezes e em ocasiões tão diferentes, que ainda não pensou que fosse verdade, apesar das recuas estarem preparadas nas cavalariças e a comitiva oficial começar a reunir-se. Ajudou-o a secar-se de qualquer maneira, e colocou-lhe o capote dos paramos sobre o corpo nu, porque a xícara abanava com o tremor das suas mãos. Meses antes, ao vestir uma calças de pele de camurça que não usava desde as noites babilónicas de Lima, ele tinha descoberto que à medida que perdia peso, ia diminuindo de estatura. Até a sua nudez era diferente, pois tinha o corpo pálido e a cabeça e as mãos como que crestadas pelo excesso de exposição à intempérie.
Tinha feito quarenta e seis anos no último mês de Julho, mas já os seus ásperos cabelos caribenhos se haviam tornado cinzentos e tinha os ossos desconjuntados pela decrepitude prematura, e todo ele se apresen-tava tão abatido que não parecia capaz de perdurar até ao Julho seguinte. No entanto, os seus gestos decididos pareciam ser de alguém menos danificado pela vida, e caminhava sem parar à volta de nada. Bebeu a tisana em cinco sorvos ardentes que por pouco não lhe empolaram a língua, fugindo dos seus próprios rastos de água, nas esteiras esfiapadas do chão, e foi como se bebesse o filtro da ressurreição. Mas não disse uma palavra enquanto não soaram as cinco horas na torre da catedral próxima.
Sábado, oito de Maio do ano trinta, dia da Santíssima Virgem, Medianeira de Todas as Graças — anunciou o mordomo. — Está a chover desde as três da madrugada.
Desde as três da madrugada do século dezassete — disse o general com a voz ainda perturbada pelo hálito acre da insónia. E acrescentou a sério: — Não ouvi os galos.
Aqui não há galos — disse José Palácios.
Não há nada — disse o general. — É terra de infiéis.
(…)
Podcast (estudio-raposa-audiocast): Download