Nota biográfica >>

A primeira página de grandes obras da literatura.

“Afrodite”, de Isabel Allende

15.12.2013

Depois de se arrepender de todas as guloseimas que rejeitou por vaidade e as oportunidades de fazer amor que rechaçou por atitude puritana ou outros compromissos, a escritora chilena Isabel Allende tenta redimir-se com seu livro Afrodite: contos, receitas e outros afrodisíacos. A escritora, famosa por romances como A casa dos espíritos e De amor e de sombras, conta as coisas que aconteceram em sua vida de nómada com doses cavalares de fantasia. E assim, nas suas obras, desfilam avós etéreas que se comunicam com fantasmas, tias virando anjos e tios que decidem que é melhor ser faquir, dentre outras personagens, que seriam membros da sua família.

Arrependo-me das dietas, dos pratos deliciosos rejeitados por vaidade, tanto como lamento as ocasiões de fazer amor que deixei passar por estar ocupada em tarefas pendentes ou por virtude puritana. Passeando pelos jardins da memória, descubro que as minhas recordações estão associadas aos sentidos. A minha tia Teresa, a que se foi transformando em anjo e morreu com indícios de asas nos ombros, está para sempre ligada ao cheiro dos rebuçados de violeta. Quando esta dama encantadora aparecia de visita com o seu vestido cinzento e a sua cabeça de rainha coroada de neve, nós as crianças corríamos ao seu encontro e ela abria com gestos rituais a sua velha mala, sempre a mesma, tirava uma pequena caixa de lata pintada e dava-nos um rebuçado cor de malva. E a partir de então, todas as vezes que o aroma inconfundível de violetas se insinua no ar, a imagem dessa tia santa, que roubava flores nos jardins alheios para levar aos moribundos do hospital, regressa intacta à minha alma. Quarenta anos depois eu soube que era esse o selo de Josefina Bonaparte, que confiava cegamente no poder afrodisíaco daquele aroma fugidio que tão depressa assalta com uma intensidade quase nauseabunda, como desaparece sem deixar rasto para logo voltar com renovado ardor. As cortesãs da Grécia antiga usavam-no antes de cada encontro amoroso para perfumar o hálito e as zonas erógenas, porque misturado com o odor natural da transpiração e as secreções femininas, alivia a melancolia dos mais velhos e agita de forma insuportável o espírito dos homens novos. No Tantra, filosofia mística e espiritual que exalta a união dos opostos em todos os planos, desde o cósmico até ao mais ínfimo, e na qual o homem e a mulher são espelhos de energias divinas, o violeta é a cor da sexualidade feminina, e por isso o adoptaram alguns movimentos feministas. O cheiro penetrante do iodo não me traz imagens de cortes ou cirurgias, mas sim de ouriços, essas estranhas criaturas do mar inevitavelmente relacionadas com a minha iniciação no mistério dos sentidos. Tinha eu oito anos quando a mão rude de um pescador pôs uma língua de ouriço na minha boca. Quando vou ao Chile, procuro a oportunidade de ir à costa para provar novamente ouriços recém-extraídos do mar, e de todas as vezes me oprime a mesma mistura de terror e fascínio que senti naquele primeiro encontro íntimo com um homem. Os ouriços são para mim inseparáveis desse pescador, do seu saco escuro de mariscos a escorrer água do mar e o meu despertar para a sensualidade.

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