Cristina Guedes – “A conjugação limitada”
30.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Alzira Guedes, nasceu em 21 de Julho de 1968. Psicóloga clínica e docente. Escreve porque, diz, “escrever é uma continuidade de respirar.”
30.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Amas e dizes exijo e mostras intolerância.
Amar assim sai caro
Com juros, impostos e lucros,
que só o fazes até ao sinal vermelho
que depois deles já só odeias
e dizê-lo é feio. E desfeias o acto
Amar, verbo transitivo conjugado
no avesso em que te esqueço ou te possuo.
Eu que te não sei possuir mais do que amar é
não ser incondicional mas voluntário.
Já é bom sem magoar
este verbo, afinal
conjugado no singular.
Eu amo-te com reticências.
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28.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Às vezes, tenho um sonho
Que de noite surge na minha
almofada Como se fosse
trazido por uma brisa doce Ou
um beijo quente que me aconchega.
Ali acontece
Que de um instante ao outro, tudo
muda e fico sonho
Entre a realidade de estar a dormir e a
ilusão do sonho que
me
invade e me transforma
E há uma linha ténue onde tudo se
mistura e cresce…
E eu sou turista breve entre um e outro
Mundo
No transcendente instante que se
demora em mim.
De repente, sou todo sonho!
E o que era a cama é agora uma fresca
erva verde que me
cerca até ao arvoredo
E eu estou estendido nesse prado de
Encanto
Onde os sonhos são a forma das
gaivotas e as copas das
árvores a dançar ao som de uma
melodia inconcebível…
Debaixo de um céu azul profundo
Sinto o vento a passar por mim e pelas
minhas mãos
quando as ergo em direcção ao Sol
Escuto a voz de um som que sopra por
entre a folhagem e
produz música…
Como um piano em que as teclas são
as folhas e o pianista
é o pensamento
E vejo… a exaltação plena de uma
tranquilidade nova
Vejo a natureza… e sou feliz.
De um lado há vacas a pastar
E as suas manchas que são pingos de
tinta, deixados cair
por algum artista que conheci
Levam-me a subir a encosta até ao
topo do monte.
Pelo caminho, conheço aves de cores
Vivas
E revejo pedras que me falam ao
passar.
Uma cabra da montanha fita-me
ao
Longe
E um texugo do bosque ri-se da minha
dificuldade em
caminhar.
Chego, finalmente, até um cipreste
E cumprimento-o ao chegar.
Do interior da casca, sinto um espírito
Pulsante
Que me responde sem falar.
Olho de relance…
Talvez tenha cem anos ou mais.
Falou-me do tempo e das coisas que
Vira
Disse-me que ali, há mil anos atrás,
havia um vulcão
Uma boca cheia de vento, fogo e
Erupção
Onde a Terra se abria
Para extravasar a sua solidão.
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28.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Vem, vem comigo
0 peito é quente
A madrugada é fria
E a saudade que tenho de um sonho
É toda a vida que me resta.
Sou apenas as mãos pintadas Sim,
assim, estas mãos pintadas
Numa cor que tu não vês
Sou apenas o horizonte longe
Essa estonteante montanha
De ilusões em neve fina Onde
nunca irás
Sou esse firmamento de estrelas apagadas E
na verdade, a minha perdição é a liberdade
Que por querer ser livre
Refém me torno em
cada instante…!
Sou um prisioneiro faminto
Num país feito de saudade.
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28.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Sabes,
Sou um pássaro.
Só hoje descobri
Por entre as arcadas do monumento alado em tua honra
Quando esticava os braços que eram asas à sombra
Olhei de relance para um espelho fixo
No outro lado da rua
E vi um corpo de pássaro…
Uma memória de pássaro…
Um levitar… de pássaro
Que não se escondia… nem calava.
Vi uma alma de pássaro…
Que não fugia nem se camuflava
No denso arvoredo que ainda haveria de existir
Junto ao lago sagrado do artista genuíno
Que compõe melodias feitas de si próprio
E se transforma… em breves instantes
Em instantes de si mesmo…
Nos pedaços da obra que inventa
Da escultura que molda
Do poema que escreve…
E ele a sua métrica… a sua regra…a sua forma… o seu
Sentido…
De sonhador…
De apaixonado…
De amante…
E crepita… luz! Crepita!
Cintila firmamento suave! Eu espero por ti… pela tua voz!
Espero… pelo teu sabor sumptuoso… febril… Quente…
Pelo teu silvo ardente…
Essa melodia divinamente harmoniosa
Que estipula… todos os limites do céu…
Aqui…
Ali…
No infinito…
Por dentro do vácuo ermo e sorridente
Desse lampejo de liberdade que é voar…
Assim…
Com as asas… Abanando…
Assim.…
Porque, sabes?
Sabes… meu bom amigo..
Hoje descobri…
Sou um pássaro!
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22.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Os seios da minha amada são como duas romãs maduras;
O seu cabelo tem perfume de alfazema;
Os seus lábios são da cor do açafrão
E a sua boca tem o sabor do damasco;
Os seus olhos são como pedras preciosas
E a sua pele como o oiro da mesquita de Abd-Al-Rahman.
A visão da minha amada é a minha alegria;
As formas do seu corpo, a minha delícia;
O seu amor, a minha felicidade.
Nada é comparável à minha amada.
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22.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Dois leões lutaram pela mesma corça,
E vieram dois leopardos e roubaram-na.
Por isso já Isabel pode lavar a camisa na água de Albaicín
E o rei pode beber das lágrimas de Aynadamar.
Vede, ó príncipes, com que cuidado foi posta cada pedra,
Em Granada, a esplêndida, e plantada cada rosa.
Uma mãe não veste a filha com mais carinho.
Contemplai os versos dos poetas
Que ornamentam as paredes da Alhambra,
E as palavras do Alcorão que as tornam veneráveis.
Granada curvou a cerviz perante a força das vossas armas.
Mas respeitai os vencidos e a memória dos que pereceram.
Perante as pedras e as rosas de Granada,
Dizei ao menos: “Como eles a amaram!”
A luta dos dois leões refere-se à guerra entre El Zagal e Boabdil, seu sobrinho, que roubara o trono ao pai, Mulhacén (Muley Assam), que morrera em 1585 e contra o qual também lutara. Os dois leopardos são Isabel de Castela e Fernando de Aragão.
Aynadamar é um topónimo composto por “Ayn” (“olho”, com o significado de nascente), e “damar” (lágrimas), talvez como referência à maneira como surge a água nessas fontes que abastecem a zona alta de Granada, Albaicín, coração da cidade velha.
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22.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
A minha amada desnudou-se e cobriu-se de vergonha.
Só a vergonha veste agora a minha amada.
A minha amada dormiu com o infiel,
Entregou-se nos seus braços e deitou-se na sua cama.
Esqueceu as juras de amor que eu lhe fizera
E deixou-se seduzir por falas mansas.
Como eu entendo que ele a tenha amado,
A ela, a mais amável de todas!
Oh, se eu pudesse tê-lo cegado antes que ele a contemplasse!
Mas não tocarei sequer um só dos seus cabelos,
Para não tornar mais infeliz ainda a minha amada.
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22.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Ó rei cristão, por que roubaste os meus cordeirinhos,
Nascidos para serem livres nos prados de Granada?
Eles foram amamentados pelos seios de sua mãe
E comeram à minha mesa.
Ainda tenho nas faces o calor dos seus beijos,
Sinto nos braços o doce peso dos seus corpos,
Nas mãos, a ternura das suas carícias,
E nos lábios o sabor das suas faces.
Por quantos palácios pode trocar-se um filho?
Quantas muralhas vale aquele que gerámos?
Se eu tivesse o mundo, trocá-lo-ia pelos meus filhos.
Mas eu não posso dar aquela que outros construíram
E pela qual muitos morreram.
Em Granada há outros pais que amam
Como eu amo o dócil Yusuf e o meigo Ahmed.
E nenhum teria Granada para trocar pelos filhos.
Antes tomasses o meu escudo como troféu de guerra
E o meu cavalo como despojo de batalha,
Porque isso seria sinal de eu estar morto.
Ó rei cristão, ó príncipe de Castela,
A minha dor é imensa.
Se não me atiro sobre a ponta de um alfange,
É para que não haja mais um morto por quem chorar
Nem menos um vivo para chorar os mortos.
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22.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Da mais alta torre de Granada
Vejo partir o meu amado para a batalha.
Choro, mas sem lágrimas,
Porque quero perceber até o último grão da poeira
Levantada pelos cascos do seu cavalo,
Forte como a morte
E belo como a vida.
Eu temo a coragem do meu amado.
Ele despreza a vida
Porque sabe que na sua morte
Eu o amarei mais ainda.
Mas amar mais do que eu amo já é só dor,
Já só é tristeza.
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22.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Daniel de Sá, de nome completo, Daniel Augusto Raposo de Sá nasceu na Maia, S. Miguel, Açores, em Março de 1944. Autor com vasta obra, constituída por romances, crónicas, novelas, ensaios e contos.
Daniel de Sá foi professor do ensino primário. Estudou Filosofia e Teologia em Valência e Granada, exerceu vários cargos públicos, escreve em vários jornais e já publicou mais de uma dezena de livros. Foi agraciado pelo Presidente da República num 10 de junho, Dia de Portugal, Camões e das Comunidades, com o Grau de Oficial da Ordem Infante D. Henrique pela relevância de sua obra e por sua contribuição na expansão da cultura portuguesa.
Como acontece muitas vezes li, por acaso, um poema de Daniel de Sá. Ouviu-o, também certamente por acaso e teve a amabilidade de me enviar uma mensagem agradecendo a minha leitura e onde se pode ler: “Não me considero poeta, mas faço, às vezes, umas coisas por graça. Ofereci há meses a minha mulher um livrinho não comerciável. Mas penso publicá-lo em breve em edição bilingue, Português/Castelhano. Se ler alguma coisa do anexo, perceberá porquê. E, se algum dos poemas lhe interessar, terei muito gosto se o usar no Raposa.”
Pois, interessou sim, senhor e vamos ter neste “Palavras de Ouro” a poesia de Daniel de Sá. Começamos por ouvir as palavras que o poeta dedicou a Maria Alice, sua mulher, na introdução do tal “livrinho não comerciável” intitulado “As rosas de Granada” e onde ficamos a sentir e perceber a atmosfera onde se desenrolam os poemas.
“Nunca escrevi um poema para ti, Maria Alice. Porque sempre te julguei superior a toda a poesia. Pelo menos a minha. Mas, por um desses acasos que são mais criadores do que qualquer momento de inspiração, inventei um poeta árabe de Granada – Ahmed Ben Kassin. E fui-lhe dando vida pela voz que lhe dava.
A maior parte dos poemas de Ahmed Ben Kassin são dedicados à sua amada. Para os compor, imaginei que ele a amasse tanto como eu a ti. E assim, numa espécie de metempsicose consciente, ele foi eu ou eu fui ele em cada poema. Até um pouco também nos que dedicou a Granada, cidade que me fascina. Ou a Boabdil, o trágico e último rei dela. Ambos terão partido no mesmo dia para o exílio nas Alpujarras, a sul da Serra Nevada, e mais tarde para Marrocos. Ahmed Ben Kassin assistiu ao choro de Boabdil, ao voltar-se num último adeus à cidade que tanto amava. E também ao pranto do rei deposto quando, pouco tempo depois, perdeu Morayma, a outra imensa paixão da sua vida.
Não me perguntes nada mais acerca de Ahmed Ben Kassin e da sua amada. Da minha sei que vive comigo há trinta e sete anos. Dia a dia, que hoje, quando isto escrevo, se completam.
Por isso este livro te pertence. Não te é dedicado simplesmente, como os outros, mas é teu, teu fisicamente e não apenas em intenção. Todos os exemplares te são oferecidos.
Seguem-se, então, os meus poemas de Ahmed Ben Kassin. Ou teus, aliás.
Maia, na nossa casa, em 31 de Março de 2011
Daniel”
Morayma vendo partir Boabdil
Da mais alta torre de Granada
Vejo partir o meu amado para a batalha.
Choro, mas sem lágrimas,
Porque quero perceber até o último grão da poeira
Levantada pelos cascos do seu cavalo,
Forte como a morte
E belo como a vida.
Eu temo a coragem do meu amado.
Ele despreza a vida
Porque sabe que na sua morte
Eu o amarei mais ainda.
Mas amar mais do que eu amo já é só dor,
Já só é tristeza.
Boabdil chorando os filhos prisioneiros
Ó rei cristão, por que roubaste os meus cordeirinhos,
Nascidos para serem livres nos prados de Granada?
Eles foram amamentados pelos seios de sua mãe
E comeram à minha mesa.
Ainda tenho nas faces o calor dos seus beijos,
Sinto nos braços o doce peso dos seus corpos,
Nas mãos, a ternura das suas carícias,
E nos lábios o sabor das suas faces.
Por quantos palácios pode trocar-se um filho?
Quantas muralhas vale aquele que gerámos?
Se eu tivesse o mundo, trocá-lo-ia pelos meus filhos.
Mas eu não posso dar aquela que outros construíram
E pela qual muitos morreram.
Em Granada há outros pais que amam
Como eu amo o dócil Yusuf e o meigo Ahmed.
E nenhum teria Granada para trocar pelos filhos.
Antes tomasses o meu escudo como troféu de guerra
E o meu cavalo como despojo de batalha,
Porque isso seria sinal de eu estar morto.
Ó rei cristão, ó príncipe de Castela,
A minha dor é imensa.
Se não me atiro sobre a ponta de um alfange,
É para que não haja mais um morto por quem chorar
Nem menos um vivo para chorar os mortos.
Granada em mãos infiéis
A minha amada desnudou-se e cobriu-se de vergonha.
Só a vergonha veste agora a minha amada.
A minha amada dormiu com o infiel,
Entregou-se nos seus braços e deitou-se na sua cama.
Esqueceu as juras de amor que eu lhe fizera
E deixou-se seduzir por falas mansas.
Como eu entendo que ele a tenha amado,
A ela, a mais amável de todas!
Oh, se eu pudesse tê-lo cegado antes que ele a contemplasse!
Mas não tocarei sequer um só dos seus cabelos,
Para não tornar mais infeliz ainda a minha amada.
Isabel e Fernando
Dois leões lutaram pela mesma corça,
E vieram dois leopardos e roubaram-na.
Por isso já Isabel pode lavar a camisa na água de Albaicín
E o rei pode beber das lágrimas de Aynadamar.
Vede, ó príncipes, com que cuidado foi posta cada pedra,
Em Granada, a esplêndida, e plantada cada rosa.
Uma mãe não veste a filha com mais carinho.
Contemplai os versos dos poetas
Que ornamentam as paredes da Alhambra,
E as palavras do Alcorão que as tornam veneráveis.
Granada curvou a cerviz perante a força das vossas armas.
Mas respeitai os vencidos e a memória dos que pereceram.
Perante as pedras e as rosas de Granada,
Dizei ao menos: “Como eles a amaram!”
Notas:
A luta dos dois leões refere-se à guerra entre El Zagal e Boabdil, seu sobrinho, que roubara o trono ao pai, Mulhacén (Muley Assam), que morrera em 1585 e contra o qual também lutara. Os dois leopardos são Isabel de Castela e Fernando de Aragão.
Aynadamar é um topónimo composto por “Ayn” (“olho”, com o significado de nascente), e “damar” (lágrimas), talvez como referência à maneira como surge a água nessas fontes que abastecem a zona alta de Granada, Albaicín, coração da cidade velha.
A minha amada
Os seios da minha amada são como duas romãs maduras;
O seu cabelo tem perfume de alfazema;
Os seus lábios são da cor do açafrão
E a sua boca tem o sabor do damasco;
Os seus olhos são como pedras preciosas
E a sua pele como o oiro da mesquita de Abd-Al-Rahman.
A visão da minha amada é a minha alegria;
As formas do seu corpo, a minha delícia;
O seu amor, a minha felicidade.
Nada é comparável à minha amada.
Ouvimos, neste “Palavras de Ouro” o nº 162, poemas de Daniel de Sá e que fazem parte de um livro de poemas intitulado “As Rosas de Granada”.
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19.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
O sexo é sagrado,
como salgadas são as gotas de suor
que brotam dos meus poros
e encharcam nossas peles.
A noite é meu templo
onde me torno uma deusa enlouquecida
sentindo teus pelos sobre a minha pele.
Neste instante já não sou nada,
somente corpo,
boca,
pele,
pêlos,
línguas,
bocas.
E a vida brota da semente,
dos poucos segundos de êxtase.
Tuas mãos como um brinquedo
passeiam pelo meu corpo.
Não revelam segredos
desvendam apenas o pudor do mundo,
descobrem a febre dos animais.
Então nos tornamos um
ao mesmo tempo em que
a escuridão explode em festa.
A noite amanhece sem versos,
com a música do seu hálito ofegante.
O sol brota de dentro de mim.
Breves segundos.
Por alguns instantes dispo-me do sofrimento.
Eu fui feliz.
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19.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Não sou prisioneira do tempo
Nem ancoro meus sonhos
No solo árido da minha vida medíocre.
Deixo meus olhos flutuarem
Entre céus e infernos
Que a poesia me leva.
Procuro a jóia rara
De um sorriso único
Repleto de angústia e surpresa.
Navego obscura entre
meus medos e meus desejos
sem ter certeza de nada.
Que venha a vida, então,
E penetre em mim
Como um punhal
Rasgando minhas dúvidas
Cortando as amarras
Que me prendem ao possível.
Pertenço a quem me possuir,
Sou do mundo.
Sou minha vida.
Sou o espelho do que jamais serei.
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19.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Moram em mim
outros olhos que me vêem.
Neles existo e não me enxergo.
Tenho os olhos de um animal,
arisco e selvagem.
Farejo minhas vontades,
sacio minha sede
nos rios que correm em outros corpos.
Todos únicos sem serem um;
verdadeiros sem serem reais.
Tenho os olhos do pecado que não existe,
e escorrem por eles
lágrimas do sangue da minha culpa.
Tenho os olhos de versos.
Olhos de alma
que mostram meu coração de vidro,
tão pequeno e frágil,
que brilha e lacera em meu peito
inúmeras feridas
da onde brotam palavras vazias,
palavras vãs,
que eu nunca conseguirei entender.
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19.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Sei o gosto do seu beijo,
Seu cheiro me guia
Na escuridão da noite.
Onde está você agora
Que seu espírito engoliu meu coração ?
Por que não o encontro,
Amanhecendo ao meu lado,
Quando meu corpo chora seu abraço…
Não tente me entender,
Apenas me toque,
Deixa seu suor inundar
Minha pele com seu prazer
Beija-me
Possua-me
Que na minha solidão
Já não cabe o tamanho da sua ausência,
Pois quando vi seus olhos
Repletos de luz
O breu da minha tristeza
Iluminou-se de festa
E fez da minha estrada
Um rio de águas mornas
Desaguando no seu mar.
Deixe-me gritar seu nome
Deixe-me sangrar seu coração
Deixe-me lamber em seus lábios
Toda a dor que eles tem
E beber sua saliva de fel.
Não deixe meus olhos se fecharem,
Pois eles possuem os sonhos frágeis
De quem ama demais.
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19.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Não vejo mais sentido
Naquilo que tenho sentido.
Não flutuo em águas rasas.
Mergulho.
A escuridão e o peso do oceano
Me fascinam e apavoram.
Até onde posso ir?
E se eu não souber como voltar?
Não há farol que me guie.
Não há razões.
A profundeza do oceano é meu abrigo.
Seguro e solitário.
Abissal sem fim.
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07.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Sento-me à mesa e escrevo…
A voz que me dita os versos tudo diz e cala
e é minha e das coisas que me cercam,
de quem encontrei na rua e não conheço
e dos amigos fiéis, de quanto ouvi disperso
na rua, nos cafés, onde estive,
dos livros que leio e dos jornais,
de quanto vejo e vivo como meu;
é tua, meu amor, de quanto é nosso,
só porque sentindo-o o partilhamos,
destas horas que se alongam tristes
e doutras que foram e hão-de ser
da luta, do tormento, da alegria
e da glória de vivê-las plenamente.
Sento-me à mesa e escrevo…
A voz que me dita os versos tudo diz e cala:
é a tua, amigo a quem não vejo há tanto
e cuja presença me não esquece,
cuja lembrança em toda a parte aquece
as esperanças comuns pra que vivemos;
é a tua, a quem nunca conheci,
apodrecendo não sei onde
em que distantes exílios e cemitérios secretos,
e de quem nos longos dias te chora
e nas longas noites te espera
Enganando-se que ainda vens
e de quem ouve os teus passos na rua
sabendo que isso é mentira
e fica à noite à janela olhando as esquinas desertas;
é dos teus companheiros resolutos
que as tuas armas empunham com a mesma decisão,
com aquela mão que se estende
para outra mão e a aperta
como se fosse o seu par…
Sento-me à mesa e escrevo…
Voz que tudo dizes e calas, de onde vens?
de que infância perdida me falas,
que soluçar de mães em ti acode
sob o doce ninar da minha mãe?
é da menina esfarrapada que na rua brinca
nas poças da rua com o sol e esquece
a vida triste lá de casa?
é dos meninos que só a loucura embala
mortos na guerra, mortos de fome e frio,
mortos queimados, de baionetas cravados,
nos fornos crematórios, nos ghettos de Varsóvia,
de Viena, de Belgrado, de qualquer cidade?
é dos meninos de escola da sua idade
aprendendo a ler?
é dos meninos operários da sua idade
aprendendo a trabalhar e a sofrer?
Fel que no sangue da vida se mistura,
amargo destino que se tece
da nossa vida futura.
Voz que tudo dizes e calas,
onde foi, onde?
Em Madrid, em Paris, em Praga?
Em Roma, em Londres, Buenos Aires?
De que pontos cardeais correndo livre vens?
Através de que mordaças me falas?
Em que prisões surdamente gemes e te calas?
É a tua voz clara, Gabriel?
A tua voz dentre dentes quebrados, Fucik?
O teu adeus de esperança, Zoia?
Ou é, Alexandre, o teu incitamento
que nos vem?
Em que língua humana me dizes
quanto é do mundo o sofrimento e a glória?
Em que estrofes os poetas te cantam?
Maja de Granada, inviolada e pura,
Federico ao nosso amor te deu;
de que amargo silêncio te fizeste
no exílio onde Machado morreu?
És a arma invicta e discreta,
voz que pelos homens clama,
és o aço puro e a chama
que para a luta os corações tempera.
Sento-me à mesa e escrevo…
Voz que me dita os versos segredada,
é do povo o canto e o choro que vem
do fundo desespero em que se move,
é de quanto espera o apagado canto,
epopeia que só a sua luta forja;
é a certeza em cada peito
com um facho de vida em vida transmitido
de que a noite imunda e mais comprida
tem segura madrugada que há-de vir.
Voz que me dita os versos
lentamente da vida dos dias se insinua:
é a voz das coisas e das gentes,
uma dor e um desespero suspenso,
e é a paixão e o grito que levanta,
é a praga que a nossa raiva activa,
o desafio que se lança,
o sofrimento que protesta,
a humildade que se não arrasta,
o orgulho que não fere,
a saudação fraterna, aberta e franca
– é o estalar do chicote
com o ódio que levanta.
É a tua voz, coração do mundo,
é a tua voz ansiosa, a tua voz vibrante,
a tua voz desesperada, a tua voz confiante.
Sejam meus versos a vogal precisa,
bata no meu pulso o coração do mundo.
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07.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Sete pequenos poemas para uma obra de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957), ilustrador, que exerceu influência determinante nas modernas artes gráficas portuguesas, quer através de capas, quer de ilustrações que realizou para obras de escritores seus contemporâneos
1
Um menino chora,
sem razão?!…
A mãe limpa com um lenço branco
as lágrimas e chora,
chora porque chora
o seu menino,
sem razão?!…
2
Manta de maltez: sol do
inverno e sombra do
estio, mortalha pronta,
dossel do amor, tecto e
sobrado de não ter casa.
Manto de um rei das
encruzilhadas, sudário
rasgado de dentes e cutiladas;
uma almofada sobre as ortigas…
uma bandeira de Liberdade.
3
Flor da terra, carne dos
homens, de papoilas
bravas entre searas
coroada. Agua da fonte
corrente do rio, pão
ainda quente haste do
trigo. Porto seguro na
vida incerta, paz dos
teus braços da luta
incerta. Esperança e
consolo, pano de linho
sobre as feridas ainda
abertas; bandeira ao
vento. A manhã
que nasce está
nos teus olhos.
4
Os calos da mão apertam cabos
de enxadas quebradas e os
ferros dos arados rasgam
caminhos abertos nas futuras
madrugadas.
5
Um traço largo e profundo
debrua um corpo cansado,
sob a forma rígida de um braço
desenha-se o músculo empedernido
dos trabalhos.
Mapa da vida o teu rosto.
lavrado pelo trabalho,
um pergaminho vincado
da cicatriz da amargura.
Mas no fundo dos teus olhos,
tão firmes e tão seguros,
raia a certa madrugada
dos mundos futuros.
6
Num mundo de maiorais, de
feitores, de cães de guarda,
ficou no pó das estradas a
marca dos nossos passos
continuando outros passos. O
caminho é por aqui, dirá quem
vier depois olhando estes
sinais e disso estará tão certo
que o que ainda é distante lhe
será perto.
7
Sobre a planície cai
uma chuva de lume
do sol a prumo.
A solidão sem sombras
incendeia-se de estrelas
e o silêncio estala
como a pele de frenéticos tambores
batidos furiosamente.
Os homens dobrados para a terra levantam
as cabeças medindo os horizontes rasos e
distantes com olhos ávidos, sem piedade.
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06.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Este programa usará, para falar de Joaquim Namorado, o texto disponibilizado no blogue “Outra Margem”
Joaquim Namorado, Poeta de Incomodidade
“Metam O burro na gaiola
de doiradas grades
e
tratem-no a alpista
s
e quiserem
- é só um despropósito
Mas esperar dele o trinar
Do canário melodioso
É simplesmente tolo.”
Joaquim Namorado viveu entre 1914 e 1986. Nasceu em Alter do Chão, Alentejo, em 30 de Junho. Licenciou-se em Ciências Matemáticas pela Universidade de Coimbra, dedicando-se ao ensino. Exerceu durante dezenas de anos o professorado no ensino particular, já que o ensino oficial, durante o fascismo, lhe esteve vedado. Depois do 25 de Abril, ingressou no quadro de professores da secção de Matemática da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. Notabilizou-se como poeta neo-realista, tendo colaborado nas revistas Seara Nova, Sol Nascente, Vértice, etc. Obras poéticas: Aviso à Navegação (1941), Incomodidade (1945), A Poesia Necessária (1966). Ensaio: Uma Poética da Culutra (1994).)
Dizem que foi o Joaquim Namorado quem, para iludir a PIDE e a Censura, camuflou de “neo-realismo” o tão falado “realismo socialista” apregoado pelo Jdanov… Entre muitas outras actividades relevantes , foi redactor e director da Revista de cultura e arte Vértice, onde ficou célebre o episódio da publicação de pensamentos do Karl Marx, mas assinados com o pseudónimo Carlos Marques. Um dia, apareceu na redacção um agente da PIDE a intimidar: “ó Senhor Doutor Joaquim Namorado, avise o Carlos Marques para ter cuidadinho, pois nós já estamos de olho nele”…
No concelho da Figueira da Foz– considerava-se um figueirense de coração e de acção – chegou a ser membro da Assembleia Municipal, eleito pela APU. Teve uma modesta residência na vertente sul da Serra da Boa Viagem. Essa casa, aliás, serviu de local para reuniões preparatórias da fundação do jornal Barca Nova. Muito mais poderia ser dito para recordar Joaquim Namorado, um Cidadão que teve uma vida integra, de sacrifício e de luta, sempre dedicada á total defesa dos interesses do Povo. Nos dias 28 e 29 de Janeiro de 1983, por iniciativa do jornal Barca Nova, a Figueira prestou-lhe uma significativa homenagem, que constituiu um acontecimento nacional de relevante envergadura, onde participaram vultos eminentes da cultura e da democracia portuguesa. Na sequência dessa homenagem, a Câmara Municipal da Figueira, durante anos, teve um prémio literário, que alcançou grande prestígio a nível nacional. Santana Lopes, quando passou pela Figueira da Foz, como Presidente de Câmara, decidiu acabar com o “Prémio do Conto Joaquim Namorado”.
Vamos ouvir poemas publicados numa edição de autor e selecionado pela Vértice, em 1966, com o título “Poesia Necessária”.
“A voz que me dita os versos.”
Sento-me à mesa e escrevo…
A voz que me dita os versos tudo diz e cala
e é minha e das coisas que me cercam,
de quem encontrei na rua e não conheço
e dos amigos fiéis, de quanto ouvi disperso
na rua, nos cafés, onde estive,
dos livros que leio e dos jornais,
de quanto vejo e vivo como meu;
é tua, meu amor, de quanto é nosso,
só porque sentindo-o o partilhamos,
destas horas que se alongam tristes
e doutras que foram e hão-de ser
da luta, do tormento, da alegria
e da glória de vivê-las plenamente.
Sento-me à mesa e escrevo…
A voz que me dita os versos tudo diz e cala:
é a tua, amigo a quem não vejo há tanto
e cuja presença me não esquece,
cuja lembrança em toda a parte aquece
as esperanças comuns pra que vivemos;
é a tua, a quem nunca conheci,
apodrecendo não sei onde
em que distantes exílios e cemitérios secretos,
e de quem nos longos dias te chora
e nas longas noites te espera
Enganando-se que ainda vens
e de quem ouve os teus passos na rua
sabendo que isso é mentira
e fica à noite à janela olhando as esquinas desertas;
é dos teus companheiros resolutos
que as tuas armas empunham com a mesma decisão,
com aquela mão que se estende
para outra mão e a aperta
como se fosse o seu par…
Sento-me à mesa e escrevo…
Voz que tudo dizes e calas, de onde vens?
de que infância perdida me falas,
que soluçar de mães em ti acode
sob o doce ninar da minha mãe?
é da menina esfarrapada que na rua brinca
nas poças da rua com o sol e esquece
a vida triste lá de casa?
é dos meninos que só a loucura embala
mortos na guerra, mortos de fome e frio,
mortos queimados, de baionetas cravados,
nos fornos crematórios, nos ghettos de Varsóvia,
de Viena, de Belgrado, de qualquer cidade?
é dos meninos de escola da sua idade
aprendendo a ler?
é dos meninos operários da sua idade
aprendendo a trabalhar e a sofrer?
Fel que no sangue da vida se mistura,
amargo destino que se tece
da nossa vida futura.
Voz que tudo dizes e calas,
onde foi, onde?
Em Madrid, em Paris, em Praga?
Em Roma, em Londres, Buenos Aires?
De que pontos cardeais correndo livre vens?
Através de que mordaças me falas?
Em que prisões surdamente gemes e te calas?
É a tua voz clara, Gabriel?
A tua voz dentre dentes quebrados, Fucik?
O teu adeus de esperança, Zoia?
Ou é, Alexandre, o teu incitamento
que nos vem?
Em que língua humana me dizes
quanto é do mundo o sofrimento e a glória?
Em que estrofes os poetas te cantam?
Maja de Granada, inviolada e pura,
Federico ao nosso amor te deu;
de que amargo silêncio te fizeste
no exílio onde Machado morreu?
És a arma invicta e discreta,
voz que pelos homens clama,
és o aço puro e a chama
que para a luta os corações tempera.
Sento-me à mesa e escrevo…
Voz que me dita os versos segredada,
é do povo o canto e o choro que vem
do fundo desespero em que se move,
é de quanto espera o apagado canto,
epopeia que só a sua luta forja;
é a certeza em cada peito
com um facho de vida em vida transmitido
de que a noite imunda e mais comprida
tem segura madrugada que há-de vir.
Voz que me dita os versos
lentamente da vida dos dias se insinua:
é a voz das coisas e das gentes,
uma dor e um desespero suspenso,
e é a paixão e o grito que levanta,
é a praga que a nossa raiva activa,
o desafio que se lança,
o sofrimento que protesta,
a humildade que se não arrasta,
o orgulho que não fere,
a saudação fraterna, aberta e franca
– é o estalar do chicote
com o ódio que levanta.
É a tua voz, coração do mundo,
é a tua voz ansiosa, a tua voz vibrante,
a tua voz desesperada, a tua voz confiante.
Sejam meus versos a vogal precisa,
bata no meu pulso o coração do mundo.
Agora, sete pequenos poemas para uma obra de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957), ilustrador, que exerceu influência determinante nas modernas artes gráficas portuguesas, quer através de capas, quer de ilustrações que realizou para obras de escritores seus contemporâneos
1
Um menino chora,
sem razão?!…
A mãe limpa com um lenço branco
as lágrimas e chora,
chora porque chora
o seu menino,
sem razão?!…
2
Manta de maltez: sol do
inverno e sombra do
estio, mortalha pronta,
dossel do amor, tecto e
sobrado de não ter casa.
Manto de um rei das
encruzilhadas, sudário
rasgado de dentes e cutiladas;
uma almofada sobre as ortigas…
uma bandeira de Liberdade.
3
Flor da terra, carne dos
homens, de papoilas
bravas entre searas
coroada. Agua da fonte
corrente do rio, pão
ainda quente haste do
trigo. Porto seguro na
vida incerta, paz dos
teus braços da luta
incerta. Esperança e
consolo, pano de linho
sobre as feridas ainda
abertas; bandeira ao
vento. A manhã
que nasce está
nos teus olhos.
4
Os calos da mão apertam cabos
de enxadas quebradas e os
ferros dos arados rasgam
caminhos abertos nas futuras
madrugadas.
5
Um traço largo e profundo
debrua um corpo cansado,
sob a forma rígida de um braço
desenha-se o músculo empedernido
dos trabalhos.
Mapa da vida o teu rosto.
lavrado pelo trabalho,
um pergaminho vincado
da cicatriz da amargura.
Mas no fundo dos teus olhos,
tão firmes e tão seguros,
raia a certa madrugada
dos mundos futuros.
6
Num mundo de maiorais, de
feitores, de cães de guarda,
icou no pó das estradas a
marca dos nossos passos
continuando outros passos. O
caminho é por aqui, dirá quem
vier depois olhando estes
sinais e disso estará tão certo
que o que ainda é distante lhe
será perto.
7
Sobre a planície cai
uma chuva de lume
do sol a prumo.
A solidão sem sombras
incendeia-se de estrelas
e o silêncio estala
como a pele de frenéticos tambores
batidos furiosamente.
Os homens dobrados para a terra levantam
as cabeças medindo os horizontes rasos e
distantes com olhos ávidos, sem piedade.
Ouviram o Palavras de Ouro 161 dedicado a Joaquim Namorado, o Poeta de Incomodidade.
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05.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
És absolutamente transcendente, única e fabulosa
Ninguém é como tu, jamais alguém o foi ou o será
Nem és deste mundo de tão etérea, de tão formosa
Seres no meu peito, e no meu leito, e naquela rosa
Que não está ali, nunca lá esteve e nunca estará
Mas que eu invento no Olimpo do teu corpo
Onde há as flores e os mundos que eu quiser
E os mares, os ares e as fronteiras se dissipam
Porque tu mais do que deusa, és a mulher
Em que eu viajo até aos lugares onde ficam
Os crepúsculos e os poentes que eu souber
Imaginar nos silêncios que te levam p`ra tão longe
E me levam p`ra tão perto do melhor que sei amar
Levando-me p`ra tão longe, pr`a tão lá do horizonte
Que nos crepúsculos há luz e nos poentes há mar
De sereias, de duendes, de bacos e querubins
Que vêm em caravelas e trazem sacos de estrelas
P`ra incendiar o teu ventre entre plátanos e jasmins
Em que me queimo e perfumo, me deito e nunca durmo
Porque ao que vou é tão grande e tanto colho de ti
Que no regresso nem sei quem era quando parti
Eu regresso em granito e em nenúfares me deito
De nenúfares sou feito e de granito me couraço
Quando te abraço, no feminino, no masculino…
E te beijo como homem, como menino…
E em ti me sento…
Como complemento, como suplemento…
Porque te invento…
A partir de mim…
Tu não existes,
Eu sou assim…
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04.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Nome:
Já me chamaram uns quantos
Apelido-me outros tantos
Alguns tão inomináveis
Que nem sequer os cito.
Idade:
A suficiente, não a bastante
Para ter juízo e não tenho
Para ser conforme e não sou
Para não sonhar tanto e sonho
Mas também para saber
Que já não serei o Che e não farei revolução.
Nacionalidade:
Imposta.
Nasci onde me pariram
Onde o acaso o ditou
Não escolhi pais ou pátria
Estou aqui. Calhou.
Estado:
Muitas vezes zangada
Outras vezes cansada
Com tanta merda que vejo
E por nada poder fazer
Para mudar o estado das coisas
Por isso o estado mais frequente
É a precisar de mudança e em ebulição.
Habilitações literárias:
Algumas
Tenho as estantes dobradas
Com o peso dos livros que tenho.
Formação académica:
Nenhuma
Mas sou muito bem educada
Até me chegar a mostarda ao nariz
E como nasci tesa e plebeia
Sem ascendentes importantes
E não bebi chá em pequenina
O verniz estala num instante.
Experiência:
Alguma
Nenhuma em áreas relevantes
Algumas muito interessantes
Outras pouco recomendáveis
Mas…
Para este curriculum não interessa nada.
Como o que vigora neste país
É a lei do desenrasca
Eu que tenho os nomes que me chamo
A idade que me apetecer
E sou uma pindérica sem cultura académica
Num país só de doutores
Considero-me qualificada
Para me desenrascar
Em qualquer função e em qualquer lugar.
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03.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Fazia a lista de compras com um ar ligeiramente
Sonhador. Amachucava pedacinhos de papel
Que nos fim pareciam smarties.
– Estou sempre contigo, sempre.
– E tu pesas-me.
– Sem ti, sinto-me num vácuo.
– És de chumbo.
E na lista de compras lá vinha um quilo de arroz
Um litro de azeite, duas latas de atum.
O sol, como uma flor, fazia da cozinha
Uma festa, a que as cortinas conferiam ar de templo.
No fogão ardia o leite, ouvia-se o chiar
Da máquina de café e o coração
Como um atleta, cada vez mais pálido
Cada vez mais longe.
do seu livro de 2003 “Em Trânsito”
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03.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
De alumínio e do tanto uso, de um cinza
Baço, encardido. Talvez por isso um dia disse-o
Em voz alta com as lágrimas, ali, longe de tudo
Num banco de Lisboa.
O frio que passou do carro para o autocarro.
As tardes de chuva quando chegava no chão
Sentado ao lado do condutor, ao lado do deus
Que o trazia no mesmo frio, na mesma posição de chinês.
Sem nos dizer do que passava, das suas alegrias
ou tristezas. Assim até o b.i.
A lei portuguesa acenar e dizer dos estigmas
Do trabalho que se deve em nome da mesa.
Não produzia molas suficientes e a marmita
Arrumada para sempre no fundo do armário
Ficou esquecida, mas não o sofrimento.
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02.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
A espantosa realidade das coisas
É a minha descoberta de todos os dias.
Cada coisa é o que é,
E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra,
E quanto isso me basta.
Basta existir para se ser completo.
Tenho escrito bastantes poemas.
Hei de escrever muitos mais, naturalmente.
Cada poema meu diz isto,
E todos os meus poemas são diferentes,
Porque cada coisa que há é uma maneira de dizer isto.
Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra.
Não me ponho a pensar se ela sente.
Não me perco a chamar-lhe minha irmã.
Mas gosto dela por ela ser uma pedra,
Gosto dela porque ela não sente nada.
Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo.
Outras vezes oiço passar o vento,
E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.
Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto;
Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem estorvo,
Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar;
Porque o penso sem pensamentos
Porque o digo como as minhas palavras o dizem.
Uma vez chamaram-me poeta materialista,
E eu admirei-me, porque não julgava
Que se me pudesse chamar qualquer coisa.
Eu nem sequer sou poeta: vejo.
Se o que escrevo tem valor, não sou eu que o tenho:
O valor está ali, nos meus versos.
Tudo isso é absolutamente independente da minha vontade.
De, Alberto Caeiro in Poemas Inconjuntos, Vol. I , Obras Completas, de
Fernando Pessoa, pág. 219/220
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30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Não minha mãe. Não era ali que estava.
Talvez noutra gaveta. Noutro quarto.
Talvez dentro de mim que me apertava
contra as paredes do teu sexo-parto.
A porta que entretanto atravessava
talhada no teu ventre de alabastro
abria-se fechava dilatava.
Agora sei: dali nunca mais parto.
Não minha mãe. Também não era a sala
nem nenhum dos retratos de família
nem a brisa que a vida já não tem.
Talvez a tua voz que ainda me fala…
… o meu berço enfeitado a buganvília…
Tenho tantas saudades, minha mãe!
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30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Nas tuas mãos tomaste uma guitarra
copo de vinho de alegria sã
sangria de suor e de cigarra
que à noite canta a festa de amanhã.
Foste sempre o cantor que não se agarra
o que à terra chamou amante e irmã
mas também português que investe e marra
voz de alaúde rosto de maçã.
O teu coração de ouro veio do Douro
num barco de vindimas de cantigas
tão generoso como a liberdade.
Resta de ti a ilha dum tesouro
a jóia com as pedras mais antigas.
Não é saudade, não! É amizade.
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30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Tia Maria Poesia a acabar.
Stop. Vem depressa. Testamento incerto.
É certo que não tinha que deixar
mais que um saldo no banco a descoberto.
Anda a crítica toda a farejar.
Os enteados rondam muito perto.
Volta depressa ó meu. O teu lugar
é aqui ajudando neste aperto.
Toma a carreira Inferno-Portugal.
Fizeste-a tantas vezes! E a viagem
agora de caixão é mais barata.
Vem-me ajudar a consolar a tia.
A Natália está lá. Não a Sofia
Cara-de-cu que sempre foi ingrata.
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30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Dos olhos corre a água do Mondego
Os cabelos parecem os choupais
Inês! Inês! Rainha sem sossego
dum rei que por amor não pode mais.
Amor imenso que também é cego
Amor que torna os homens imortais.
Inês! Inês! Distância a que não chego
Morta tão cedo por viver demais.
Os teus gestos são verdes os teus braços
são gaivotas pousadas no regaço
dum mar azul turquesa intemporal.
As andorinhas seguem os teus passos
e tu morrendo com os olhos baços.
Inês! Inês! Inês de Portugal.
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30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Inverno não ainda mas Outono
a sonata que bate no meu peito
Poeta distraído cão sem dono
até na própria cama em que me deito.
Acordar é a forma de ter sono
O presente o pretérito imperfeito
Mesmo eu de mim me abandono
se o vigor que me devo não respeito.
Morro de pé, mas morro devagar.
A vida é afinal o meu lugar
e só acaba quando eu quiser.
Não me deixo ficar. Não pode ser.
Peço meças ao Sol, ao Céu, ao Mar
Pois viver é também acontecer.
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30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
De sílabas de letras de fonemas
se faz a escrita. Não se faz um verso.
Tem de correr no corpo dos poemas
o sangue das artérias do universo.
Cada palavra há-de ser um grito
um murmúrio um gemido uma erecção
que transporte do humano ao infinito
a dor o fogo a flor a vibração
A Poesia é de mel ou de cicuta?
Quando um poeta se interroga e escuta
ouve ternura luta espanto ou espasmo?
Ouve como quiser seja o que for
Fazer poemas é escrever amor
e poesia o que tem de ser é orgasmo.
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30.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
As noites — escorpiões suicidados
Com o seu próprio veneno nas entranhas
ressuscitam depois em madrugadas
cada vez mais azuis e mais estranhas.
São insónias tecendo alucinadas
uma teia de horas e de aranhas
patas tácteis peludas eriçadas
com o peso latente das montanhas.
E por dentro dos olhos um perfil
de ferro e fogo deixa-nos queimados
selados como a chuva e como o vento.
Será possível que depois de Abril
ainda adormeçamos acordados
neste país-raiz de sofrimento?
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