Nota biográfica

A primeira página de grandes obras da literatura.

“1984”, de George Orwell

14.08.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

1984

Winston, herói de 1984, último romance de George Orwell, vive aprisionado na engrenagem totalitária de uma sociedade completamente dominada pelo Estado, onde tudo é feito coletivamente, mas cada qual vive sozinho. Ninguém escapa à vigilância do Grande Irmão, a mais famosa personificação literária de um poder cínico e cruel ao infinito, além de vazio de sentido histórico.

Era um dia frio e ensolarado de Abril, e os relógios batiam treze horas. Winston Smith, com o queixo fincado no peito numa tentativa de fugir ao vento impiedoso, esgueirou-se rápido pelas portas de vidro do Edifício Vitória; não porém com rapidez suficiente para evitar que o acompanhasse uma onda de pó áspero.
O vestíbulo cheirava a repolho cozido e a capacho de trapos. Na parede do fundo fora pregado um cartaz colorido, grande demais para exibição interna. Representava apenas uma cara enorme, de mais de um metro de largura: o rosto de um homem de uns quarenta e cinco anos, com espesso bigode preto e traços rústicos mas atraentes. Winston encaminhou-se para a escada. Era inútil experimentar o elevador. Raramente funcionava, mesmo no tempo das vacas gordas, e agora a electricidade era desligada durante o dia. Fazia parte da campanha da economia, preparatória da Semana do Ódio. A casa dele ficava no sétimo andar, e Winston, que tinha trinta e nove anos e uma variz ulcerada no tornozelo direito, subiu devagar, descansando várias vezes no caminho. Em cada patamar, diante da porta do elevador, o cartaz da cara enorme fitava-o da parede. Era uma dessas figuras cujos olhos seguem a gente por toda a parte. «O Grande Irmão vela por ti», dizia a legenda.
Dentro de casa uma voz sonora lia uma lista de números relacionados com a produção de ferro gusa. A voz saía de uma placa metálica rectangular, semelhante a um espelho fosco, embutida na parede direita. Winston torceu um comutador e o som da voz diminuiu um pouco, embora as palavras ainda fossem audíveis. O aparelho (chamava-se teletela) podia ter o volume do som reduzido, mas era impossível desligá-lo de vez. Winston foi até à janela. Ele era uma figura miúda, frágil, a magreza do corpo ainda realçada pelo macacão azul que era o uniforme do Partido. O cabelo era muito louro, a face naturalmente sanguínea e a pele irritada pelo sabão ordinário, as gillettes sem corte e o rude Inverno, que mal terminara.

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Carlos Drummond de Andrade – “A Máquina do Mundo”

26.02.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

Este poema, juntamente com 9 outros, faz parte de um CD que editei e que está disponível na Loja da Raposa para aquisição e a que dei o título de “Os 10+”. Estes poemas foram selecionados por uma revista brasileira como os mais importantes de sempre.

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspeção
contínua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própria imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los,
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro ou eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo.”

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensado foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancoroso dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar,
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade:

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé se abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios do sol inda se filtra;

como defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incurioso, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagaroso, de mãos pensas.

Este poema foi escolhido como o melhor poema brasileiro de todos os tempos por um grupo significativo de escritores e críticos, a pedido do caderno “MAIS” (edição de 02-01-2000), publicado aos domingos pelo jornal “Folha de São Paulo”. Publicado originalmente no livro “Claro Enigma”, o texto acima foi extraído do livro “Nova Reunião”, José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1985, pág. 300.

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“Os Sensos Incomuns”, de Maria Isabel Barreno

24.02.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

Publicado originalmente em 1993, este livro de contos foi galardoado no ano da sua publicação com o Grande Prémio do Conto Camilo Castelo Branco e Grande Prémio do Conto da Associação Portuguesa de Escritores, e, em 1994, com o Prémio P.E.N. Clube, na categoria de ficção.

Começou a ler o livro num sábado de manhã. Um amigo seu tinha-lho recomendado. Belíssimo, dissera, há uma personagem feminina comovente, linda, tão misteriosa que é uma presença quase ténue, no livro, um fio de existência feito só de indícios, e de súbito reparamos que a personagem se instalou em nós, no coração, no ar que respiramos. Como se tivesse saltado das páginas do livro, literalmente, repetia o amigo, como se tivesse saído do livro e o seu destino viesse fundir-se ao nosso quotidiano.
Ele confiava na opinião daquele amigo. Gostava de passar os fins-de-semana de Inverno em casa, estirado no sofá da sala, lendo. Por isso sexta-feira à tarde foi comprar o livro antevendo com volúpia todo o desenrolar do processo: sair da livraria sentindo o livro nas mãos (era absolutamente impossível pedir emprestado um livro quando se tratava de saboreá-lo), desfazer o embrulho em casa, devagar, cheirar o livro (adorava o cheiro dos livros novos), mirar a capa dum lado e do outro, ler as badanas, deixar o livro pousado em cima da mesa da sala enquanto ia à cozinha preparar e comer o seu jantar (ele vivia sozinho); voltar à sala, olhar o livro de longe, aguçando o desejo; quase ceder à tentação de começar imediatamente a ler; resistir, aguçar ainda mais o desejo, decidir não, hoje à noite vou sair, amanhã sim. E o sábado chegou com uma cor amarela, cor da alegria, apesar de estar um dia chuvoso.
Começou a ler o livro sábado de manhã. Leu as primeiras vinte páginas com avidez. Sim aí estava ela, a tal comovente e ténue personagem feminina, fio secreto de todo o enredo. Era uma obra de arte, finamente cinzelada nas entrelinhas, entrevista, prometida. Prometido o encontro, leu mais vinte páginas, a inevitável desvelação não se anunciava mais próxima. A mulher entrara na sua pele como a mais insidiosa das amantes, mas permanecia feita só de obcecantes indícios, ameaçadoramente esfíngica. As páginas seguintes foram-se tornando progressivamente torturantes, cansativas, frustrantes. Corpo feito de entrelinhas, a mulher nada oferecia, revelava-se, recusava-se. Um jogo, infindo de coqueteria, um baixar de olhos, de pálpebras.

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“O Vermelho e o Negro”, de Stendhal

12.02.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

A ação transcorre na França no tempo da Restauração antes da Revolução de 1830, supostamente entre 1826 e 1830, e trata das tentativas de um jovem de subir na vida, apesar do seu nascimento plebeu, através de uma combinação de talento, trabalho duro, engano e hipocrisia, apenas para encontrar-se traído por suas próprias paixões. Em ensaio de 1954, Somerset Maugham incluiu-o entre os dez maiores romances de todos os tempos.

Verrières pode ser considerada uma das mais lindas cidades do Franco Condado. As suas casas brancas, com os pontiagudos telhados vermelhos, estendem-se pelo declive de uma colina em que as sinuosidades são marcadas por maciços de vigorosos castanheiros. O Doubs corre a algumas dezenas de metros abaixo das suas fortificações, construídas outrora pelos Espanhóis e hoje em ruínas.
A pequena cidade está abrigada do norte por uma montanha alta, um dos contrafortes do Jura. Os cumes recortados do Verra cobrem-se de neve com os primeiros frios de Outubro. Uma torrente, que se precipita da montanha, atravessa Verrières, antes de se lançar no Doubs, e põe em movimento um grande número de serrações de madeira. É uma indústria simples e que proporciona um certo bem-estar à maior parte dos habitantes, mais campónios que citadinos. Contudo, não foi esta indústria que enriqueceu aquela cidadezita. À fábrica de chitas, chamadas de Mulhouse, se deve a abastança geral que, desde a queda de Napoleão, tornou possível a reconstrução das fachadas de quase todas as casas de Verrières.
Mal se entra na cidade fica-se aturdido pelo estrépito de uma máquina barulhenta e de aparência terrível. Vinte pesados martelos, tombando com um estrondo que faz tremer o pavimento, são erguidos por uma roda movida pela água da torrente. Cada um fabrica por dia não sei quantos milhares de pregos. São lindas e frescas raparigas quem coloca debaixo destes enormes martelos os bocaditos de ferro que são rapidamente transformados em pregos. Este trabalho, de aparência tão rude, é um dos que causam mais admiração ao viajante que vai pela primeira vez às montanhas que separam a França da Helvécia. 
Se, ao entrar em Verrières, perguntar a quem pertence a bela fábrica de pregos que ensurdece as pessoas que sobem a Grande Rua, responder-lhe-ão com uma entoação arrastada: «Ah! É do senhor presidente da Câmara.»

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“A casa dos espíritos” – Isabel Allende

09.01.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

Romance de Isabel Allende, publicado em 1982, que retrata a saga da família Trueba, no Chile, ao longo do século XX. É constituído por catorze capítulos e um epílogo. A ação da obra reflete o momento revolucionário do Chile, terminado com o golpe militar de 1973, que veio a derrubar o presidente Salvador Allende. A história é narrada por três personagens: Esteban Trueba, a sua mulher, Clara, e a neta do casal, Alba. Baseado neste best-seller de Isabel Allende, surgiu, em 1993, um filme com o mesmo nome do livro, dirigido por Billie August. Tem a participação de grandes atores, tais como Jeremy Irons, desempenhando o papel de Esteban Trueba; Meryl Streep, como Clara; Glenn Close, no papel de Férula; Winona Ryder, como Blanca; Antonio Banderas, como Pedro.
(Wikipédia)

«Barrabás chegou à família por via marítima», anotou a menina Clara com a sua delicada caligrafia. Já nessa altura tinha o hábito de escrever as coisas importantes e, mais tarde, quando ficou muda, escrevia também as trivialidades, sem suspeitar que cinquenta anos depois os seus cadernos me iriam servir para resgatar a memória do passado e sobreviver ao meu próprio espanto. O dia em que chegou Barrabás era Quinta-Feira Santa. Vinha numa jaula indigna, coberto dos próprios excrementos e de urina, com um olhar extraviado de preso miserável e indefeso, adivinhando-se, porém, pelo porte real da cabeça e pelo tamanho do esqueleto o gigante lendário que veio a ser. Era uma dia aborrecido e outonal, que em nada fazia imaginar os acontecimentos que a menina registou para serem recordados e que ocorreram durante a missa das doze, na paróquia de San Sebastián, à qual assistiu com toda a família. Em sinal de luto, os santos estavam tapados com panos roxos que as beatas sacudiam anualmente no arcaz da sacristia e, por baixo dos lençóis de luto, a corte celestial parecia um amontoado de móveis esperando mudança, sem que as velas, o incenso ou os gemidos do órgão pudessem contrastar com esse lamentável efeito. Erguiam-se vultos ameaçadores no lugar dos santos de corpo inteiro, com rostos idênticos, de expressão enjoada, com complicadas cabeleiras de cabelo de morto, rubis, pérolas, esmeraldas de vidro pintado e vestuário de nobres florentinos. O único favorecido com o luto era o padroeiro da igreja, São Sebastião, porque, na Semana Santa, reservava para os fiéis o espectáculo do seu corpo torcido numa posição indecente, atravessado por meia dúzia de flechas, escorrendo sangue e lágrimas, como um homossexual sofredor, cujas chagas, milagrosamente frescas graças ao pincel do padre Restrepo, faziam Clara estremecer de nojo.
Era uma longa semana de penitência e jejum, não se jogava às cartas, não se tocava música que incitasse à luxúria e ao esquecimento, observava-se, na medida do possível, a maior tristeza e castidade, apesar de, justamente nesses dias, o aguilhão do demónio tentar com maior insistência a débil carne católica. O jejum consistia em tenros pastéis de massa folhada, saborosos guisados de legumes, fofas tortilhas e grandes queijos trazidos do campo, com que as famílias recordavam a Paixão do Senhor, tendo o cuidado de não provar o mais pequeno pedaço de carne ou de peixe, sob pena de excomunhão, como dizia, insistindo, o padre Restrepo. Ninguém se atreveria a desobedecer-lhe.

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“Naná” de Émile Zola

11.11.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Integrante de um ciclo de vinte romances, “Naná” descreve a trajetória da filha de uma lavadeira que, corrompida na adolescência, transforma-se na mais poderosa cortesã do Segundo Império francês. Escrito em 1880, provavelmente este seja o romance mais popular de Émile Zola, e um dos perfis de mulher mais explorados pelo cinema e pela literatura.

Às nove horas a plateia do Teatro das Variedades estava ainda vazia. Alguns espectadores, no balcão e na orquestra, esperavam, como que tresmalhados por entre as poltronas de veludo vermelho, na branca claridade do lustre a meia-luz. Uma sombra inundava a grande mancha vermelha do pano; e nem um ruído chegava da cena, estando a ribalta às escuras e as estantes dos músicos esbandalhadas. Somente em cima, no galinheiro, em redor da rotunda do tecto onde mulheres e crianças nuas tomavam o seu voo num céu averdungado pelo gás, os chamamentos e os risos sobressaíam por entre um falazar contínuo, e cabeças entoucadas ou embarretadas se mostravam, como que dispostas em degraus, sob as largas clarabóias redondas, de molduras douradas.
Por momentos aparecia uma arrumadora, azafamada, de bilhetes na mão, conduzindo na sua frente um cavalheiro acompanhado de uma senhora, que se sentavam, o homem de casaca, a senhora elegante e esbelta, olhando a sala com lentidão. Na orquestra, apareceram dois jovens. Conservaram-se de pé, observando.
— Não te dizia eu, Heitor — exclamou o mais velho dos dois, um rapagão de bigode negro — que chegávamos muito cedo?… Mais valera que me tivesses deixado acabar o meu charuto.
Passava uma arrumadora.
Oh! senhor Fauchery — disse ela familiarmente. — Isto não vem a principiar antes de meia hora.
Nesse caso, porque anunciam eles para as nove horas? — murmurou o Heitor, cujo rosto magro e comprido tomou uma expressão aborrecida. — Ainda esta manhã, a Clarisse, que entra na peça, me garantiu que principiaria às nove em ponto.
Calaram-se um momento, levantando a cabeça e perscrutando a sombra dos camarotes.

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“Cem Anos de Solidão” de Gabriel García Márquez

11.10.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

cem

Cem Anos de Solidão é uma obra do escritor colombiano Gabriel García Márquez, Prémio Nobel da Literatura em 1982, e é considerada uma das obras mais importantes da literatura latino-americana. Esta obra é das mais lidas e traduzidas de todo o mundo. Durante o IV Congresso Internacional da Língua Espanhola, realizado em Cartagena, na Colômbia, em Março de 2007, “Cem Anos de Solidão” foi considerada a segunda obra mais importante de toda a literatura hispânica, ficando apenas atrás de “Dom Quixote de la Mancha”. Utilizando o estilo conhecido como realismo mágico, “Cem Anos de Solidão” cativou milhões de leitores e ainda atrai milhares de fãs à literatura constante de Gabriel García Márquez.
A primeira edição foi publicada em Buenos Aires, Argentina, em Maio de 1967, pela editora Editorial Sudamericana, com uma tiragem inicial de 8.000 exemplares.

(Wikipedia)

(Texto do excerto, não disponível. Leitura gravada em 9 de Setembro de 2005)

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“D. Quixote de La Mancha”, de Miguel de Cervantes.

10.10.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dom Quixote de La Mancha (Don Quijote de la Mancha em castelhano) é um livro escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes y Saavedra (1547-1616). O título e ortografia originais eram El ingenioso hidalgo Don Qvixote de La Mancha, com sua primeira edição publicada em Madrid no ano de 1605. É composto por 126 capítulos, divididos em duas partes: a primeira surgida em 1605 e a outra em 1615. É considerada a grande criação de Cervantes. O livro é um dos primeiros das línguas européias modernas e é considerado por muitos o expoente máximo da literatura espanhola. Em princípios de maio de 2002, o livro foi escolhido como a melhor obra de ficção de todos os tempos. A votação foi organizada pelo Clubes do Livro Noruegueses e participaram escritores de reconhecimento internacional.

Vivia, não há muito, numa aldeia da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, um fidalgo dos de lança em armeiro, escudo velho, pileca escanzelada e galgo veloz. Dissipavam-lhe três partes dos bens um cozido, de vaca um pouco mais que de carneiro; salpicão as mais das noites; rabugices e lazeiras aos sábados; lentilhas ás sexta-feiras; algum borracho, de melhoria, aos domingos. Saio de velarte, calças de veludo para as festas; pantufos do mesmo; velori do mais fino, com que se 
honrava nos dias de semana, davam-lhe cabo dos sobejos. Tinha em casa uma patroa que passava dos quarenta, uma sobrinha que não chegava aos vinte, e um criado de fora e de dentro, que tanto lhe selava a besta, como manejava o podão. Calhava a idade do nosso fidalgo com os cinquenta anos; era de compleição robusta, seco de carnes, enxuto de rosto, grande madrugador e amigo da caça. Querem dizer que tinha o sobrenome de Quijada ou Quesada (no que há alguma dife
rença nos autores que deste caso escrevem) ainda que por conjeturas verosímeis se deixe perceber que se chamava Quijana; porem isto pouco importa ao nosso conto; basta que a narração dele não saia um ponto da verdade. Nos espaços em que estava ocioso (que eram os mais do ano) é de saber que este sobredito fidalgo se ocupava em ler livros 
de cavalarias, com tanto gosto e a ferro, que olvidou quase totalmente o exercício da caça, e até o amanho da sua fazenda. E a tal ponto chegou a curiosidade e desvario que vendeu muitas nesgas de terra de semeadura, para comprar livros de cavalaria em que ler, e assim levou para casa quantos pôde encontrar. E a nenhuns achava tão bem como aos que compôs o famoso Feliciano de Silva: porque a clareza da prosa, e aquelas intrincadas razões lhe pareciam de pérolas; e mais quando chegava a ler aqueles requebros e carteis, onde em muitas partes achava escrito: «a razão da sem-razão que á minha razão se faz, de tal maneira a minha razão enfraquece que com razão me queixo da vossa formosura»; e também quando lia: «os altos céus que de vossa divindade divinamente com as estrelas vos fortificam, e vos fazem merecedora do merecimento que merece a vossa grandeza».
Perdia o juízo o pobre cavaleiro com estas e semelhantes razões, e disvelava-se em compreende-las e decifrar-lhes o sentido, que não lhes arrancara o próprio Aristóteles, nem as percebera se para isso ressuscitasse.

(Texto retirado de uma edição de 1905 da Guimarães & Cª com atualizações de algumas palavras)

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Lenda – “A Origem do Universo”

08.11.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

América do Norte, Cahuillas

ORIGEM DO UNIVERSO
Reinavam as trevas sobre o universo. Ocasionalmente, ouviam-se estrondos e ruídos. Certa vez, as cores branca, azul, vermelha e castanha envolveram-se numa espiral e uniram-se num ponto distante e imensurável do qual surgiu uma grande bola de fogo. Esta continuou a rodopiar sobre si até que se condensou numa placenta que se dividiu em dois embriões. O universo começava a agitar-se. Prematuramente, as crianças rasgaram o embrião e morreram, pelo que o universo voltou a contrair-se e a imobilizar-se.
As cores voltaram a juntar-se, repetiu-se o processo, mas, desta vez, as crianças sobreviveram. O universo, que então já respirava, cedo começou a ser disputado por duas crianças; Mukat e Temaiyauit combatiam entre si para decidirem quem era o mais velho e quem teria assim direito a governar sobre as coisas do cosmos. A disputa prometia durar eternamente, mas os dois irmãos acabaram por decidir separar-se e dividir a criação entre si. Porém, Temaiyauit quis levar consigo a terra e os céus, regiões estas que não estavam contempladas no acordo estabelecido. Mukat colocou então um joelho sobre a terra, segurando com uma mão o céu e com a outra as demais criaturas. Deste gesto nasceram os vales, as montanhas, as fendas dos rios e as águas que os enchem. Derrotado, Temaiyauit rasgou a superfície da terra de forma a levar para o mundo crónico os seres que criou. Desde então, a terra tem este aspecto acidentado e irregular.

Trad.: Manuel João Magalhães
Música de Luís Pedro Fonseca

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Amadeu Baptista – “A noite cai”

10.10.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

A noite cai e o poeta parte para a cidade.

O alforge vai cheio de sedimentações, beringelas,

leiras de feijão, e um potente holofote,

para iluminar o tempo.

Recém-chegado da província, cabe-lhe 

manusear o livro, o alfa, o ómega, ainda que 

abomine tanto tumulto, tantos carros que 

passam, tanto grito,

e se creia um centauro nas avenidas novas. Os

bairros, as áleas rectilíneas, ampliam a 

indiferença, havendo em tudo um poder

infernal de crateras sobre os muros, destroços

nas janelas, marchas forçadas,
 farpas.

(Do livro “Atlas das Circussntâncias” . Ed. “Lua de Marfim”)

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João Soares Coelho – “Luzia Sanchez”

27.08.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

João Soares Coelho (1200-1278) foi um Rico-homem e cavaleiro
medieval do Reino de Portugal e do conselho real do rei D. Afonso III.

Luzia Sánchez, estais em grande falta
comigo, que nom fodo mais nada senão
uma vez; e, pois fodo, se Deus me valer
fique disso afrontado bem por três dias.
Por Deus, Luzia Sánchez, Dona Luzia,
se eu vos pudesse foder, foder-vos-ia.

Vejo-vos deitar comigo muito defraudada,
Luzia Sánchez, porque não fodo nada;
mas se eu com isso vos satisfizesse,
pois eu foder não posso, peidar-vos-ia.
Por Deus, Luzia Sánchez, Dona Luzia,
se eu vos pudesse foder, foder-vos-ia.

Deu-me o Demo esta pissuça cativa,
que já nem pode cuspir saíva
e, de certo, parece mais morta que viva,
e se lh’ardess’a casa, não s’ergueria.
Por Deus, Luzia Sánchez, Dona Luzia,
se eu vos pudesse foder, foder-vos-ia.

Deitaram-vos comigo para mal dos meus pecados
pensais de mi coisas tão desconcertadas,
cuidais dos colhões, que tragu’inchados,
porque o são com foder e é com doenças
Por Deus, Luzia Sánchez, Dona Luzia,
se eu vos pudesse foder, foder-vos-ia.

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Encandescente – “Rotura”

02.07.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Todos os dias entro no mesmo dia.
Igual ao de ontem, ao de anteontem,
Ao que amanhã há-de vir.
Sei exactamente o que farei amanhã às quatro da tarde,
Assim como sei o que farei às duas,
Ou às dez.
A vida agenda programada,
Calendário viciado,
Rotina,
Destino,
Fado.
Dê-se à vida o nome que se quiser!
Eu, quero mais do que isto.
Quero tudo!,
Mesmo não sabendo o que tudo é.
Quero um destino grande num tempo pequeno,
Quero partir o ponteiro que me marca a hora
E sentir!
Desregradamente,
Intemporalmente,
Excessivamente,
Toda e qualquer emoção.
Sentir!
Sem condicionantes, moralismos, ditames ditados,
Preconceitos, obstáculos, conceitos assimilados,
Sentir!
Baixar as defesas, cortar as mordaças,
Abrir os braços, rasgar carapaças.
E sentir!
Partir o ponteiro que me marca o tempo,
Que o pontua, regula e compassa:
Sina… Calendário…Destino …Farsa…
Farsa… Calendário…Destino …Vida…
E sentir!
Mesmo que parta a cara,
Mesmo que fique de rastos,
Mesmo que nunca mais reúna os pedaços,
Quero rasgar o peito e abrir os braços…
E sentir o pulsar, a explosão,
E viver pura, límpida, única a emoção,
E dá-la dizendo:
Esta, sou eu!
Este é o meu tempo, o meu calendário,
O meu objectivo e itinerário,
Recusar a vida, dia programado,
Viver a emoção sem tempo marcado,
E sentir a paixão que me corre nas veias
Sem limites
Sem regras
Sem pejo
Sem peias.

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Manuel da Fonseca – “Segunda”

28.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quando foi que demorei os olhos
sobre os seios nascendo debaixo das blusas,
das raparigas que vinham, à tarde, brincar comigo?…
… Como nasci poeta,
devia ter sido muito antes que as mães se apercebessem disso
e fizessem mais largas as blusas para as suas meninas.
Quando, não sei ao certo.

Mas a história dos peitos, debaixo das blusas,
foi um grande mistério.
Tão grande
que eu corria até ao cansaço.
E jogava pedradas a coisas impossíveis de tocar,
como sejam os pássaros quando passam voando.
E desafiava,
sem razão aparente,
rapazes muito mais velhos e fortes!
E uma vez,
de cima de um telhado,
joguei uma pedrada tão certeira,
que levou o chapéu do senhor administrador!
Em toda a vila,
se falou, logo, num caso de política;
e o senhor administrador
mandou vir, da cidade, uma pistola,
que mostrava, nos cafés, a quem a queria ver;
e os do partido contrário,
deixaram crescer o musgo nos telhados
com medo daquela raiva de tiros para o céu…

Tal era o mistério dos seios nascendo debaixo das blusas!

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Rimance – “Dona Silvana”

22.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Indo a Dona Silvana
Pelo corredor acima
A tocar sua guitarra
(Oh, que tão bem a tangia!…)
Foi acordando seus pais
Que sua sesta dormiam.

— Tu que tens, Dona Silvana,
Tu que tens, ó filha minha?
— Ver minhas irmãs casadas
Vestidas à maravilha…
Eu, por ser a mais fermosa,
Por que razão ficaria?

— Não tenho com quem te case,
Senão bem te casaria…
Só se for conde Alberto…
(É casado e tem família…)
— Mande-mo aqui chamar
De sua parte e da minha.
Quero falar com ele
Dentro de uma Ave-Maria.

— Aqui estou, real senhor.
Que quer vossa senhoria?
— Quero que mates viscondessa
Pra casar com filha minha.
— Viscondessa não na mato
Que a morte não lhe é merecida.
— Mata, mata, conde Alberto,
Senão eu tiro-te a vida.

Indo o conde para casa
Mais triste que o mesmo dia,
Mandou fechar as janelas
Pra não ver que era dia;
Mandou pôr a sua mesa
Para fazer que comia.
As lágrimas eram tantas,
Já pela mesa corriam.

— Tu que tens, ó conde Alberto,
Tu que tens, ó meu amor?
— Manda o Rei que te matasse,
Manda o Rei e meu senhor.
Só se fosses pra um convento
Como freira recolhida…
— Darias-me o pão por onça
E a água por medida…

Ainda a palavra não era dita,
Já o Rei batia à porta:
Que lhe mandasse a cabeça,
Que era com pena de morte.
Que lha não desse trocada,
Que ele bem na conhecia.

— Adeus, moços, adeus, moças,
Adeus, espelho onde me eu via!
Adeus, jardins de flores,
Onde eu me advertia!
Anda cá, ó meu menino,
Que te quero abraçar!
Anda cá, ó meu menino,
Que te quero dar de mamar!

Mama, mama, meu menino,
Este leite de paixão:
Hoje, contigo nos braços,
Amanhã, já no caixão.
Mama, mama, meu menino,
Este leite de amargura:
Hoje, contigo nos braços,
Amanhã, na sepultura.

Toca o sino no palácio…
— Ó mamã, quem morreria?
— Morreu a Dona Silvana
Pela traição que fazia:
Descasar os bem casados,
Coisa que Deus não queria.

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Rimance – “Donzela que vai à guerra”

20.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

– “Já se apregoam as guerras

Entre França e Aragão:

Ai de mim que já sou velho,

Não nas posso brigar, não!

De sete filhas que tenho

Sem nenhuma ser varão! …
”
Responde a filha mais velha

Com toda a resolução:

– “Venham armas e cavalo

Que eu serei filho varão.”

– “Tendes los olhos mui vivos,

Filha, conhecer-vos-ão.”

– “Quando passar pela armada

Porei os olhos no chão.”

- “Tendes los ombros mui altos

Filha, conhecer-vos-ão.”

- “Venham armas bem pesadas,

Os ombros abaterão.”

- “Tendes los peitos mui altos

Filha, conhecer-vos-ão.”

- “Venha gibão apertado,

Os peitos encolherão.”

– “Tendes las mãos pequeninas

Filha, conhecer-vos-ão.”

- “Venham já guantes de ferro,

E compridas ficarão.”

– “Tendes los pés delicados,

Filha, conhecer-vos-ão.”

– “Calçarei botas e esporas,

Nunca delas sairão.”


– “Senhor pai, senhora mãe,

Grande dor de coração;

Que os olhos do conde Daros

São de mulher, de homem não.”
– “Convidai-o vós, meu filho,

Para ir convosco ao pomar,

Que se ele mulher for,

À maçã se há-de pegar.
”
A donzela por discreta,

O camoês foi apanhar,
– “Oh que belos camoeses

Para um homem cheirar!

Lindas maçãs para damas

Quem lhas pudera levar!”

- “Senhor pai, senhora mãe,

Grande dor de coração;

Que os olhos do conde Daros

São de mulher de homem não.”
– “Convidai-o vós, meu filho,

Para convosco jantar;

Que, se ele mulher for

No estrado se há-de encruzar.
”
A donzela, por discreta,

Nos altos se foi sentar.

– “Senhor pai, senhora mãe,

Grande dor de coração;

Que os olhos do conde Daros

São de mulher, de homem não.”

– “Convidai-o vós, meu filho,

Para convosco feirar;

Que, se ele mulher for,

Às fitas se há-de pegar.
”
A donzela, por discreta,

Uma adaga foi comprar.

– “Oh que bela adaga esta

Para com homens brigar!

Lindas fitas para damas:

Quem lhas pudera levar!”
– “Senhor pai, senhora mãe,

Grande dor de coração;

Que os olhos do conde Daros

São de mulher, de homem não.”

– “Convidai-o vós, meu filho,

Para convosco nadar;

Que, se ele mulher for,

O convite há-de escusar.
”
A donzela por discreta,

Começou-se a desnudar…

Traz-lhe o seu paje uma carta,

Pôs-se a ler, pôs-se a chorar;

– “Novas me chegam agora,

Novas de grande pesar;

De que minha mãe é morta,

Meu pai se está a finar.

Os sinos da minha terra

Os estou a ouvir dobrar;

E duas irmãs que eu tenho,

Daqui as oiço chorar.

Monta, monta, cavaleiro!

Se me quer acompanhar.
”
Chegavam a uns altos paços

Foram-se logo apear.

– “Senhor pai. trago-lhe um genro,

Se o quiser aceitar;

Foi meu capitão na guerra,

De amores me quis contar…

Se ainda me quer agora,

Com meu pai há-de falar.
”
Sete anos andei na guerra

E fiz de filho varão.

Ninguém me conheceu nunca

Senão o meu capitão;

Conheceu-me pelos olhos,

Que por outra coisa não.

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Rimance – “A Bela Infanta”

20.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Estava a bela infanta

No seu jardim assentada,

Com o pente de oiro fino

Seus cabelos penteava.

Deitou os olhos ao mar

Viu vir uma nobre armada;

Capitão que nela vinha,

Muito bem que a governava.
– “Dize-me, Ó capitão

Dessa tua nobre armada,

Se encontraste meu marido

Na terra que Deus pisava.”
– “Anda tanto cavaleiro

Naquela terra sagrada…

Dize-me tu, Ó senhora,

As senhas que ele levava.”
– “Levava cavalo branco,

Selim de prata doirada;

Na ponta da sua lança

A cruz de Cristo levava.”
– “Pelos sinais que me deste

Lá o vi numa estacada

Morrer morte de valente:

Eu sua morte vingava.”
– “Ai triste de mim viúva,

Ai triste de mim coitada!

De três filhinhas que tenho,

Sem nenhuma ser casada!…
– “Que darias tu, senhora,

A quem no trouxera aqui?”

- “Dera-lhe oiro e prata fina,

Quanta riqueza há por i.”

– “Não quero oiro nem prata,
Não nos quero para mi:

Que darias mais, senhora,

A quem no trouxera aqui?”
– “De três moinhos que tenho,

Todos três tos dera a ti;

Um mói o cravo e a canela,

Outro mói do gerzeli:

Rica farinha que fazem!

Tomara-os el-rei pra si.”
– “Os teus moinhos não quero,

Não nos quero para mi:

Que darias mais, senhora,

A quem to trouxera aqui?”
– “As telhas do meu telhado

Que são de oiro e marfim.”

– “As telhas do teu telhado

Não nas quero para mi:

Que darias mais, senhora,

A quem no trouxera aqui?”
– “De três filhas que eu tenho,

Todas três te dera a ti:

Uma para te calçar.

Outra para te vestir,

A mais formosa de todas

Para contigo dormir.”
– “As tuas filhas, infanta,

Não são damas para mi:

Dá-me outra coisa, senhora,

Se queres que o traga aqui.
– “Não tenho mais que te dar,

Nem tu mais que me pedir.”

– “Tudo, não, senhora minha,

Que inda te não deste a ti.”
– “Cavaleiro que tal pede,

Que tão vilão é de si,

Por meus vilões arrastado

O farei andar aí

Ao rabo do meu cavalo,

À volta do meu jardim.

Vassalos, os meus vassalos,

Acudi-me agora aqui!”
– “Este anel de sete pedras

Que eu contigo reparti. ..

Que é dela a outra metade?

Pois a minha, vê-Ia aí!”
– “Tantos anos que chorei,

Tantos sustos que tremi!…

Deus te perdoe, marido,

Que me ias matando aqui.”

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História 171 – “A Raposa sem rabo”

07.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

História 171 – A Raposa sem rabo

A prima Raposa andava à caça. Era noite fechada e nenhum de nós veria um palmo adiante do nariz. Mas a prima Raposa sabia ver de noite e, por isso aproveitava essa hora para fazer as suas caçadas; de dia cuidava dos arranjos caseiros, do asseio da sua linda pele e sobretudo do seu lindo rabo. Tinha o maior orgulho nele, e, na verdade, a prima Raposa passava por ter uma das caudas mais bonitas da família e da vizinhança.
A caminho da capoeira próxima, a prima Raposa atravessou um quintal e outro e outro, e sem saber como, foi cair numa ratoeira de que ela nunca suspeitara e ficou presa pelo rabo.
— Isto só a mim me aconteceria! — começou ela a lamentar-se —. Mais me valia não ter rabo! Se aqui me deixo ficar é morte certa…
Mas, por mais que fizesse, nem o rabo se desprendia da ratoeira, nem esta vinha atrás do rabo. Porém, tanto puxou, na ânsia de se ver livre, que o ferro da ratoeira cortou-lhe o rabo e ela pôde fugir, sim, mas sem rabo: teve de lá deixá-lo.
Chegou a casa tristíssima, por se ver privada da coisa mais bela que possuía no seu corpo e ao ver as primas e os primos todos com o seu formoso complemento, ficou ainda mais triste e começou a sentir inveja. Todos tinham cauda — uma cauda tão linda! — menos ela! E além
disso passou a ser objecto de admiração: nunca tinham visto uma raposa sem rabo!
Mas então que foi isso?! — perguntavam eles —. Como foi que ficou sem cauda, prima?
Como foi que fiquei sem cauda, não! Porque é que a tirei! — emendou ela, resolvendo mentir, para não contar o que lhe acontecera.
Tirou-a?! — perguntaram todos espantados.
É a última moda — explicou ela —. É o que se usa agora entre as raposas distintas, da melhor sociedade. E vocês devem fazer o mesmo. Isso de rabo é uma moda antiga, que já só se vê entre os velhos…
Os primos e as primas mais jovens, zelosos da sua elegância, começaram a mirar-se com desgosto, convencidos de que a prima Raposa tinha razão. Mas uma parenta velha, que sabia perfeitamente como as coisas se tinham passado, falou no meio de todos à raposa der-rabada:
— Minha querida amiga, acredito na sua moda e nas conveniências dela, mas digo-lhe já que nós não cortaremos os nossos rabos. Se um dia nos encontrarmos na mesma situação em que a priminha se viu, então deitaremos fora o rabo, mas antes disso, não! Que os infelizes
como você queiram que os outros os acompanhem, compreende-se, mas que os outros se disponham a seguir a mesma sorte de um infeliz, é que não! Quando o mal por cá tocar, veremos… Fique lá sem o seu rabo, que nós tomaremos conta dos nossos, de forma a que continuem
bem inteirinhos…
É claro que a prima Raposa teve de calar-se e nunca mais quis convencer a família e os amigos de que o ideal era as raposas não usarem rabo.
E aqui termina a história da raposa que ficou sem rabo

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Alexandre O’Neill – “O cheiro a cera e a incenso”

07.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

O cheiro a cera e a incenso sobe da infância e é recordado

pelo olfacto da memória. Há certos cheiros que persistem

vida fora. O cheiro da relva recém-cortada frente à casa, o

cheiro-maçã de esperma nos lençóis, o cheiro dos cavalos

depois duma caminhada, o cheiro-estalido da lenha na 

lareira, o cheiro de roupa de linho no estendal por detrás da 

casa, o cheiro silvestre da minha primeira namorada, o

cheiro dos velhos álbuns de fotografias (cheiro de morte,

mas com cheiro de vida lá dentro) sobretudo quando se sabe

que o almirante navega há muitos anos num mar para

colorir. Um avô almirante que eu nunca vi numa pose de 

leão dos mares para a fotografia (um cheiro a vaidade, que 

se perdoa tanto tempo depois,) o cheiro da catequista da 

igreja de S. Jorge de Arroios por quem eu estava

apaixonado, cheiro de castos lençóis, provavelmente os mesmos de
Camilo Pessanha. O cheiro de santidade, o cheiro de 

inveja que se desprende de certa gente malina e de certos lugares

aziago o cheiro a guarda-chuva molhado e abandonado 
como um
pássaro morto. O cheiro de flores apodrecidas
em 
amarelentos solitários. O cheiro a corpo queimado que 

anuncia a presença do demo esse que vem cheirar os cheiros

que são muito nossos para roubar a memória do que fomos

sendo nos laços e lacetes da existência.

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Alexandre O’Neill – “Dai-nos, meu Deus…”

07.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja.

Dai-nos, meu Deus, um pequeno absurdo quotidiano que seja,
que o absurdo, mesmo em curtas doses,
defende da melancolia e nós somos tão propensos a ela!
Se é verdade o aforismo faca afia faca
(não sabemos falar senão figuradamente
sinal de que somos pouco capazes de abstracção).
Se faca afia faca,
então que a faca do absurdo
venha afiar a faca da nossa embotada vontade,
venha instalar-se sobre a lâmina do inesperado
e o dia a dia será nosso e diferente.
Aflições? Teremos muitas não haja dúvida.
Mas tudo será melhor que este dia a dia.
Os povos felizes não têm história, diz outro aforismo.
Mas nós não queremos ser um povo feliz.
Para isso bastam os suíços, os suecos, que sei eu?
Bom proveito lhes faça!
Nós queremos a maleita do suíno,
a noiva que vê fugir o noivo,
a mulher que vê fugir o marido,
o órfão que é entregue à caridade pública,
o doente de hospital ainda mais miserável que o hospital
onde está a tremer, a um canto, e ainda ninguém lhe ligou
nenhuma. Nós queremos ser o aleijado nas ruas, a pedir esmola, a
a

bardalhar-se frente aos nossos olhos. Queremos ser o pai


desempregado que não sabe que NatalDai-nos, meu Deus…
há-de dar aos seus.
Garanti-nos, meu Deus, um pequeno absurdo cada dia.
Um pequeno absurdo às vezes chega para salvar.

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Alberto Silva – “La petite mort”

01.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Pincelava-te o corpo com o meu beijo. Ao de leve, suave.
Percorria-te o peito com o olhar.
Deixava deslizar, lentamente, a ponta dos meus dedos.
A pele que estendias húmida, ardente, indefesa, arrepiava-se
a cada toque, a cada brisa, a cada beijo.
Sentias suavemente as carícias dos meus lábios em teu
manto. Percorriam cada espaço descoberto.
Lentamente, sentias o corpo acendendo-se. Começavam os
suores, os gemidos, os olhares furtivos. O corpo começava-
-se-te a contorcer, sem controlo, sem regra, sem caminho.
A medida que ias sentindo a pele na pele, o som com
som, o ritmo com movimento, ias perdendo o sentido, ias
deixando-te fugir. Partias.
As coxas apertavam-se-te em conjunto, sufocavas-me as
mãos, não permitias que saísse.
A força do teu sufoco deixava antecipar a rápida chegada.
Apertavas-me as mãos, como quem não permitia que
partisse. Agora não era tempo de voltar atrás.
Deixavas-te chegar com a força de um suspiro.

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Alberto Silva – “Fome”

01.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Vejo-te em fragmentos soltos de peças quebradas
em derrotas de batalhas nunca ganhas
nem vontades de lutas diferentes
ou construções de verdadeiras vontades.
Sei-te ainda dentro dos teus ais
por eles fui-te dando o meu ter
enquanto desistias e perdias mais de ti.
Medos de passados já quebrados
despedaçaram-te vontades e quereres
navegando-te em sonhos desfeitos e moribundos
em pedaços mortos de futuros risonhos.
Ergue-te hoje em bases sólidas
de fome e vontade de viver
a vida que com quem deves saber viver
e dá-te à vontade de querer.

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Alberto Silva – “Vielas”

01.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Afagam-se incertezas em viagens matinais
por ruas e avenidas de alcatrão posto
em ritmos despertos de sonhos brandos
enquanto se espera o infinito
além da dor da tua espera.
Colam-se retalhos velhos a novos rumos
na esperança de novos horizontes
mas a esquina que vem dobrando
não acompanha o que é preciso.
Fogem-se as vielas por nossas solas
gastas e rotas das calçadas
em breves passos já cansados
até ao próximo pouso na estrada.

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“As Mulheres dos Astros”

15.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Canadá – Povo Snuqualmi

Quando a terra era ainda jovem e com poucas plantas, não existia nem sol nem lua: reinava um claro-escuro eterno, e os homens e animais falavam a mesma língua. Duas mulheres, ocupadas a extrair do solo raízes comestíveis, discutiram certa vez para decidir se era melhor casar com pescadores ou com caçadores, e se as raízes que colhiam ficariam mais apetitosas com carne ou com peixe. Finalmente, desejaram casar com estrelas. Assim fizeram; mudaram-se para o céu com os seus novos maridos; estes traziam-lhes muita caça.
O mundo celeste assemelhava-se à terra, excepto no facto de o vento, a tempestade e a chuva serem aí desconhecidos. Os homens-estrelas permitiram às suas esposas continuar a extrair raízes com a condição de elas não cavarem muito fundo. A mais velha deu à luz um filho a que chamou Lua. Como as duas mulheres se aborreciam, decidiram violar a interdição e fizeram um buraco no manto celeste: o vento entrou no mundo celeste pelo orifício, e elas viram a sua terra natal em baixo.
As mulheres confeccionaram uma longa escada de corda e fugiram. Quando chegaram à aldeia, os aldeãos saudaram-nas, e todos
quiseram ir ver a escada celeste. Por brincadeira, fizeram um baloiço monumental que oscilava de uma montanha a outra, do norte ao sul, e do sul ao norte. Arrastando-se pelo chão, a extremidade da escada cavou as ravinas que existem hoje.
No meio da festa, a mulher que tinha tido o filho confiou-o à guarda de um sapo fêmea velha e cega. Mas as mulheres-salmão raptaram-no. Quando os aldeãos se aperceberam do rapto, deixaram imediatamente a brincadeira do baloiço para procurarem a criança. O rato ficou sozinho junto ao baloiço; roeu a corda e o baloiço caiu, formando um grande rochedo, que ainda hoje existe no vale do rio Snuqualmi.
Depois de diversas tentativas, o gaio-azul conseguiu voar sobre uma enorme muralha, cortada horizontalmente em dois, e cujas metades quase batiam uma na outra; esta muralha impedia o acesso à terra dos mortos, onde vivia a criança Lua, que entretanto tinha crescido. Lua prometeu regressar para junto dos seus; tornou-se célebre devido aos prodígios que realizava, tais como a criação de rios e de montanhas, a diferenciação dos animais, a invenção do fogo, a destruição dos monstros… Por fim, tornou-se na lua.

Trad.: Manuel João Ramos

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Almada Negreiros – “Manifesto anti-Dantas e por extenso”

13.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Este texto virulento do jovem Almada (que contava 23 anos) terá sido escrito entre Abril e Setembro de 1916, sendo, portanto, anterior à conferência de 1917, início oficial do movimento futurista em Portugal.
Saiu este folheto de 8 páginas impresso em papel de embrulho, ao preço de 100 reis, todo grafado em maiúsculas e utilizando aqui e além, para sublinhar a onomatopeia – PIM!-, uns ícones representando uma mão no gesto de apontar. Segundo se diz, terá esgotado nos primeiros dias, por obra do açambarcamento do próprio visado. Apesar disso, ou graças a isso, o escândalo rapidamente se propalou e a polémica causada teve uma grande intensidade. É que, no fundo, não é só a pessoa de Dantas que é atacada, mas toda uma geração de literatos, actores, escritores, jornalistas, etc, que ele personificava: “Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi”. Através da ironia e do sarcasmo, utilizando uma linguagem iconoclasta e insultuosa, abusando de exclamações, repetições e enumerações, Almada zurze o academismo instalado e os valores tradicionais que pretendia abalar.
Em suma, trata-se de um ataque implacável ao edifício cultural e artístico vigente que impedia a entrada e frutificação das novas correntes estéticas em Portugal. É Almada a abrir caminho ao Futurismo e a si próprio. A declamação é Almada.

Manifesto anti-Dantas e por extenso por José de Alamada-Negreiros, Poeta d’Orpheu, futurista e tudo!
Todos os meus livros devem ser lido pelo menos duas vezes para os muito inteligentes e daqui para baixo é sempre a dobrar.
Basta pum basta!!!
Uma geração que consente deixar-se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir a baixo de zero.
Abaixo a geração!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!
Uma geração com um Dantas à proa é uma canoa em seco!
O Dantas é um cigano!
O Dantas é meio cigano!
O Dantas saberá gramática, saberá sintaxe, saberá medicina, saberá fazer ceias pra cardeais, saberá tudo menos escrever que é a única coisa que ele faz!
O Dantas pesca tanto de poesia que até faz sonetos com ligas de duquesas!
O Dantas é um habilidoso!
O Dantas veste-se mal!
O Dantas usa ceroulas de malha!
O Dantas especula e inocula os concubinos!
O Dantas é Dantas!
O Dantas é Júlio!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas fez uma soror Mariana que tanto o podia ser como a soror Inês ou a Inês de Castro, ou a Leonor Teles, ou o Mestre d’Avis, ou a Dona Constança, ou a Nau Catrineta, ou a Maria Rapaz!
E o Dantas teve claque! E o Dantas teve palmas! E o Dantas agradeceu!
O Dantas é um ciganão!
Não é preciso ir pró Rossio pra se ser pantomineiro, basta ser-se pantomineiro!
Não é preciso disfarçar-se pra se ser salteador, basta escrever como o Dantas! Basta não ter escrúpulos nem morais, nem artísticos, nem humanos! Basta andar com as modas, com as políticas e com as opiniões! Basta usar o tal sorrisinho, basta ser muito delicado, e usar coco e olhos meigos! Basta ser Judas! Basta ser Dantas!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas nasceu para provar que nem todos os que escrevem sabem escrever!
O Dantas é um autómato que deita pra fora o que a gente já sabe o que vai sair… Mas é preciso deitar dinheiro!
O Dantas é um soneto dele-próprio!
O Dantas em génio nem chega a pólvora seca e em talento é pim-pam-pum.
O Dantas nu é horroroso!
O Dantas cheira mal da boca!
Morra o Dantas, morra! Pim!
O Dantas é o escárnio da consciência!
Se o Dantas é português eu quero ser espanhol!
O Dantas é a vergonha da intelectualidade portuguesa!
O Dantas é a meta da decadência mental!
E ainda há quem não core quando diz admirar o Dantas!
E ainda há quem lhe estenda a mão!
E quem lhe lave a roupa!
E quem tenha dó do Dantas!
E ainda há quem duvide de que o Dantas não vale nada, e que não sabe nada, e que não é inteligente, nem decente, nem zero!
Vocês não sabem quem é a soror Mariana do Dantas? Eu vou-lhes contar:
A princípio, por cartazes, entrevistas e outras preparações com as quais nada temos que ver, pensei tratar-se de soror Mariana Alcoforado a pseudo autora daquelas cartas francesas que dois ilustres senhores desta terra não descansaram enquanto não estragaram pra português, quando subiu o pano também não fui capaz de distinguir porque era noite muito escura e só depois de meio acto é que descobri que era de madrugada porque o bispo de Beja disse que tinha estado à espera do nascer do Sol!
A Mariana vem descendo uma escada estreitíssima mas não vem só, traz também o Chamilly que eu não cheguei a ver, ouvindo apenas uma voz muito conhecida aqui na Brasileira do Chiado. Pouco depois o bispo de Beja é que me disse que ele trazia calções vermelhos.
A Mariana e o Chamilly estão sozinhos em cena, e às escuras, dando a entender perfeitamente que fizeram indecências no quarto. Depois o Chamilly, completamente satisfeito, despede-se e salta pela janela com grande mágoa da freira lacrimosa. E ainda hoje os turistas têm ocasião de observar as grades arrombadas da janela do quinto andar do Convento da Conceição de Beja na Rua do Touro, por onde se diz que fugiu o célebre capitão de cavalos em Paris e dentista em Lisboa.
A Mariana que é histérica começa a chorar desatinadamente nos braços da sua confidente e excelente pau de cabeleira soror Inês.
Vêm descendo pla dita estreitíssima escada, várias Marianas, todas iguais e de candeias acesas, menos uma que usa óculos e bengala e ainda toda curvada prá frente o que quer dizer que é abadessa.
E seria até uma excelente personificação das bruxas de Goya se quando falasse não tivesse aquela voz tão fresca e maviosa da Tia Felicidade da vizinha do lado. E reparando nos dois vultos interroga espaçadamente com cadência, austeridade e imensa falta de corda… Quem está aí?… E de candeias apagadas?
– Foi o vento, dizem as pobres inocentes varadas de terror… E a abadessa que só é velha nos óculos, na bengala e em andar curvada prá frente manda tocar a sineta que é um dó d’alma o ouvi-la assim tão debilitada. Vão todas pró coro, mas eis que, de repente, batem no portão e sem se anunciar nem limpar-se da poeira, sobe a escada e entra plo salão um bispo de Beja que quando era novo fez brejeirices com a menina do chocolate.
Agora completamente emendado revela à abadessa que sabe por cartas que há homens que vão às mulheres do convento e que ainda há pouco vira um de cavalos a saltar pla janela. A abadessa diz que efectivamente já há tempos que vinha dando pela falta de galinhas e tão inocentinha, coitada, que naqueles oitenta anos ainda não teve tempo pra descobrir a razão da humanidade estar dividida em homens e mulheres. Depois de sérios embaraços do bispo é que ela deu com o atrevimento e mandou chamar as duas freiras de há pouco com as candeias apagadas. Nesta altura esta peça policial toma uma pedaço d’interesse porque o bispo ora parece um polícia da investigação disfarçado em bispo, ora um bispo com a falta de delicadeza de um polícia d’investigação, e tão perspicaz que descobre em menos de meio minuto o que o povo já está farto de saber – que a Mariana dormiu com o Noel. O pior é que a Mariana foi à serra com as indiscrições do bispo e desata a berrar, a berrar como quem se estava marimbando pra tudo aquilo. Esteve mesmo muito perto de se estrear com um par de murros na coroa do bispo no que se mostrou de um atrevimento, de uma insolência e de uma decisão refilona que excedeu todas as expectativas.
Ouve-se uma corneta tocar uma marcha de clarins e Mariana sentindo nas patas dos cavalos toda a alma do seu preferido foi qual pardalito engaiolado a correr até às grades da janela gritar desalmadamente plo seu Noel. Grita, assobia e rodopia e pia e rasga-se e magoa-se e cai de costas com um acidente, do que já previamente tinha avisado o público e o pano também cai e o espectador também cai da paciência abaixo e desata numa destas pateadas tão enormes e tão monumentais que todos os jornais de Lisboa no dia seguinte foram unânimes naquele êxito teatral do Dantas.
A única consolação que os espectadores decentes tiveram foi a certeza de que aquilo não era a soror Mariana Alcoforado mas sim uma merdariana-aldantascufurado que tinha cheliques e exageros sexuais.
Continue o senhor Dantas a escrever assim que há-de ganhar muito com o Alcufurado e há-de ver que ainda apanha uma estátua de prata por um ourives do Porto, e uma exposição das maquetes pró seu monumento erecto por subscrição nacional do “Século” a favor dos feridos da guerra, e a Praça de Camões mudada em Praça Dr. Júlio Dantas, e com festas da cidade plos aniversários, e sabonetes em conta “Júlio Dantas” e pasta Dantas prós dentes, e graxa Dantas prás botas e Niveína Dantas, e comprimidos Dantas, e autoclismos Dantas e Dantas, Dantas, Dantas, Dantas… E limonadas Dantas- Magnésia.
E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões.
E fique sabendo o Dantas que se todos fossem como eu, haveria tais munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar.
Mas julgais que nisto se resume a literatura portuguesa? Não Mil vezes não!
Temos, além disto o Chianca que já fez rimas prá Aljubarrota que deixou de ser a derrota dos Castelhanos pra ser a derrota do Chianca.
E as pinoquices de Vasco Mendonça Alves passadas no tempo da avózinha! E as infelicidades de Ramada Curto! E o talento insólito de Urbano Rodrigues! E as gaitadas do Brun! E as traduções só pra homem do ilustríssimos excelentíssimo senhor Mello Barreto! Embaixador de Portugal em Madrid. E o frei Matta Nunes Moxo! E a Inês Sifilítica do Faustino! E as imbecelidades de Sousa Costa! E mais pedantices do Dantas! E Alberto Sousa, o Dantas do desenho! E os jornalistas do Século e da Capital e do Notícias e do Paiz e do Dia e da Nação e da República e da Lucta e de todos, todos os jornais! E os actores de todos os teatros! E todos os pintores das Belas-Artes e todos os artistas de Portugal que eu não gosto. E os da Águia do Porto e os palermas de Coimbra! E a estupidez do Oldemiro César e o Dr. José de Figueiredo Amante do Museu e ah oh os Sousa Pintos hu hi e os burros de Cacilhas e os menos do Alfredo Guisado! E o raquítico Albino Forjaz de Sampaio, crítico da Lucta a quem Fialho com imensa piada intrujou de que tinha talento! E todos os que são políticos e artistas! E as exposições anuais das Belas-Arte(s)! E todas as maquetas do Marquês de Pombal! E as de Camões em Paris; e os Vaz, os Estrela, os Lacerda, os Lucena, os Rosa, os Costa, os Almeida, os Camacho, os Cunha, os Carneiro, os Barros, os Silva, os Gomes, os velhos, os idiotas, os arranjistas, os impotentes, os celerados, os vendidos, os imbecis, os párias, os ascetas, os Lopes, os Peixotos, os Motta, os Godinho, os Teixeira, os Câmara, os diabo que os leve, os Constantino, os Tertuliano, os Grave, os Mântua, os Bahia, os Mendonça, os Brazão, os Matos, os Alves, os Albuquerques, os Sousas e todos os Dantas que houver por aí!!!!!!!!!
E as convicções urgentes do homem Cristo Pai e as convicções catitas do homem Cristo Filho!…
E os concertos do Blanch! E as estátuas ao leme, ao Eça e ao despertar e a tudo! E tudo o que seja arte em Portugal! E tudo! Tudo por causa do Dantas!
Morra o Dantas, morra! Pim!
Portugal que com todos estes senhores conseguiu a classificação do país mas atrasado da Europa e de todo o Mundo! O país mais selvagem de todas as Áfricas! O exílio dos degredados e dos indiferentes! A África reclusa dos europeus! O entulho das desvantagens e dos sobejos! Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia – se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado!
Morra o Dantas, morra! Pim!
José de Almada-Negreiros
Poeta d’Orpheu
Futurista e tudo!

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“A Criação”

12.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

(América do Norte – Povo Diguenhos)

Quando Tu-chai-pai criou o mundo, a terra era a mulher e o céu o homem. Um dia, tomado pelo desejo, o céu desceu sobre a terra e não mais quis voltar. Sentados junto ao lago que era a terra, Tu-chai-pai e o seu irmão sentiam-se a sufocar com o peso do céu que lhes caía sobre a cabeça. «E agora, o que fazemos?», perguntou o demiurgo. «Não faço ideia», respondeu de imediato o irmão. «Vamos dar um passeio», sugeriu Tu-chai-pai.
Passearam por uns momentos e sentaram-se a descansar. «E agora, que fazemos nós?», perguntou de novo o Criador. O seu irmão voltou a responder que não sabia. Então Tu-chai-pai sussurrou a palavra mágica we-hicht por três vezes, pegou em tabaco, enrolou-o e fumou três vezes. A cada trago de fumo, o céu erguia-se sobre as suas cabeças. O irmão também fumou e o céu distanciava-se cada vez mais. Quando fumaram juntos, mandaram o céu para tão longe que este tomou a forma côncava que hoje se lhe conhece.
De seguida, os irmãos resolveram colocar Norte, Sul, Levante e Poente nos seus respectivos pousos e desenharam sobre a terra duas linhas perpendiculares. Tu-chai-pai explicou então ao seu irmão que viriam de cada um destes pontos três ou quatro homens e disse-lhe que era hora de partir e criar rios, vales e montanhas. «Mas porque te dás tu a todo este trabalho?», perguntou o irmão ao Criador. Tu-chai-pai explicou então que, quando chegassem os homens, estes procurariam em vão comida e água bebível; o oceano estava já feito, mas faltavam ainda os rios. Foi depois fazer as florestas e o irmão voltou a perguntar: «Mas que fazes tu, grande tolo?» Infinitamente paciente, Tu-chai-pai respondeu que não tardaria que os homens sentissem frio e que era necessário criar algo que os pudesse aquecer.
Tu-chai-pai voltou a perguntar: «E o que fazemos agora?» O irmão voltou a responder que não sabia e que estava já a ficar cansado da Criação. O demiurgo disse-lhe então que era já hora de fazerem o homem. Tomou um pouco de lama nas mãos e fez os primeiros homens, os índios. De seguida, fez os Mexicanos. Foi fácil fazer o homem mas, quando chegou à altura de desenhar a mulher, Tu-chai-pai achou que deveria empenhar-se um pouco mais; demorou mais tempo a moldar a mulher do que a erguer os vales e as montanhas do mundo. Ordenou aos homens que viajassem para o Levante, de onde nascia, pela primeira vez, o sol. Os índios procuraram luz e, quando a encontraram, ficaram tão felizes e emocionados com a sua beleza que prometeram prestar culto a Tu-chai-pai por tão maravilhosa criação. O demiurgo avisou o seu irmão de que o sol não poderia ficar só e que era já hora de criar a lua. Esta, avisou, deveria partilhar o céu com o sol mas morreria regularmente. Quando a lua começasse a decrescer e a decrescer, os homens deveriam fazer corridas para tentar manter a lua viva. Os homens cumpriram a sua parte e os irmãos criadores, cansados de tanto trabalho, não voltaram a criar nada. Hoje, mais não fazem do que fumar tabaco enquanto se divertem com as mesquinhices do homem.

Trad.: Manuel João Magalhães
(As “gralhas” na leitura não foram corrigidas)

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Cardenal Martinez – “Salmo do homem…”

03.05.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Salmo do homem que vê a realidade e não se cala.

Ouve, Senhor, estes versos que te rezo

Ao contemplar a realidade em que vivo.

Maldito seja o sistema que não deixa sonhar os poetas

Nem permite dizer a verdade a quem pensa.

Serão seus dias de luto e de lamento,

Porque matou no Homem o mais digno.



Maldito o sistema que não pratica a justiça

E persegue e tortura e encarcera a quem anuncia.

Terá que justificar sua conduta ante a história

E não encontrará nenhuma palavra de defesa.



Maldito seja o sistema que só procura a aparência de grandeza

Quando estão morrendo de fome os homens nas suas fronteiras;

Do mesmo modo que progrediu cairá,

Porque construiu seus alicerces

Sobre corpos vivos e sangues inocentes.



Maldito o sistema que tenta matar no homem a dimensão de transcendência

E coloca no seu lugar o “deus dinheiro” , o “deus sexo”, e “deus progresso”,

Destruir-se-á por dentro irremissivelmente,

Porque o coração do homem foi bem feito

E ninguém pode matar em nós

Esta sede de infinito que nos queima.



Feliz será, porém,

O homem que bebe água na fonte da praça junto ao povo,

Não terá motivos para se envergonhar de nada,

Nem terá que baixar os olhos 

Ante qualquer homem honesto.



Feliz o homem que à força de interiorizar 

Se fez livre por dentro

E não se importa já com a denúncia dos fortes,

Serão seus dias como o trigo da terra.

Cheios de sol e esperança partilhada

E o seguirão os povos da terra.



Feliz o homem que não assiste a reuniões importantes

Nem acredita nos discursos do governo;

Feliz o homem que assim pensa,

Porque terá sempre tranquila a sua consciência.

Mesmo que sofra a incompreensão e até o desprezo.

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Cristina Guedes – “Não há dia nenhum”

30.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quantos segundos contados pelo marcar do pulso
ora apressados, ora descontentes
no vagar que todas as memórias têm e na dor
que muitas arrastam
 
 
Não há dia nenhum que detenha a memória viva
nem leis nem regras
que afinem e encaixem sentimentos
no politicamente correcto
 
Não há dia nenhum em que o teu rosto não surja do nada
pra me sacrificar ou as tuas palavras mordazes pra me sangrar
 
Não há e nem vai haver forma de conter o rio
de dor que ficou quando decidiste esconder e mentir
omitir ou devassar sentidos e vidas
 
Sabes, não sabes?
Que dia nenhum passará
sem que estejas presente neste rio!
Não haverá dia nenhum e nem isso podes impedir.

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Cristina Guedes – “Aqui jaz: saudade”

30.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Antigamente era fácil 
falar de rotinas ou de cansaços, 
de olheiras e de corpos partidos, 
porque nada disso me deixava mal. 
Na segurança do amor ou no escaldar 
da paixão não cabem queixas ou indagações. 

É um quebrar de corpos sem dor, 
um esgotar de horas nocturnas 
onde a rotina do teu suor na minha pele 
causava dependência do prazer, 
mamilos espetados furando a palma das tuas mãos, 
ancas viciadas no samba dos teus quadris, 
num ir e vir, beijos que caíam, 
desabavam por pescoços e bocas por coxas e olhos. 

Equiparava as tuas palavras sussurradas e 
sedutoras aos murmurios de fundo das conchas do mar, 
á brisa redentora do final da tarde na colina, 
antigamente eras o mel que me adoçava os dias.
 
É por isto que escrevo, com receio 
de que as minhas memórias se percam 
no fundo do mar que já não somos, 
numa demência de rituais e febres, 
num transladar de novas direcções e objectivos. 
Sou eu a praguejar, ainda viva, ainda presente 
nos meus deslumbramentos acerca de ti. 
Ainda presa a momentos de luxo 
nesse tal planeta de afectos onde o teu nome 
em neon ilumina corredores e salões, 
esquinas e ruas convexas. 
Se te doer o presente, grava-me editada em mp3, 
pra que possas continuar a viver do passado que já fomos, tu e eu. 
Mas nesse dia jorra-me pétalas em cima 
e beija o rosto já manchado de humidade, 
logo abaixo onde diz : Aqui jaz Saudade.

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Cristina Guedes – “Coroação”

30.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Nas tuas mãos, o corpo nu, embriagado
bebe sequioso a poção que para mim
houveras preparado, 
e a valsa dos teus dedos continua,
na minha alma ganhando trono
depois de me beberes inteira,
branca e nua…
 
Qual semen desmaiado, ensaias novo tango,
passo doble e o meu sexo corresponde
ritmado, ás danças tântricas fazendo lei.
 
E a manhã nasce com a tua coroação,
clitóris e glande cansados,
poros e moléculas gritando:
– já és meu senhor, meu rei!

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Cristina Guedes – “No Carnaval dos teus braços”

30.04.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

abrir a boca ao beijo
abrir as pernas ao segredo
que me vais contar com a mão
abrir o sexo á palavra quente
abrir-me em copas, ardente
deitar as pálpebras no cobertor
da tua pele e beber mel

vou sentir-te distante
dentro de mim
abrir-te o desejo guardado
e provar de ti a noite,
o nosso ardor de tempo cozinhado
vou bordar um sem-nexo,
mastigar o poema revelado,
esgrimir esse teu sexo
Virás pedir-me pela manhã
o café e a nicotina
sussurrar o amor em surdina
espreguiçar-me ei no teu abraço e
sem grande estardalhaço
enroscar-me novamente

fazer do breve eternamente
e oferecer-me ao diálogo carnal
das nossas mãos urgentes
deslumbrar-me ás
com os mistérios do Sabugal e,
no teu sexo, eu, mascaro-me de gueixa
e serves-me uma e outra vez (até esgotar),
o Carnaval…

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