“A casa dos espíritos” – Isabel Allende
09.01.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar
A primeira página de grandes obras da literatura.
09.01.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar
Romance de Isabel Allende, publicado em 1982, que retrata a saga da família Trueba, no Chile, ao longo do século XX. É constituído por catorze capítulos e um epílogo. A ação da obra reflete o momento revolucionário do Chile, terminado com o golpe militar de 1973, que veio a derrubar o presidente Salvador Allende. A história é narrada por três personagens: Esteban Trueba, a sua mulher, Clara, e a neta do casal, Alba. Baseado neste best-seller de Isabel Allende, surgiu, em 1993, um filme com o mesmo nome do livro, dirigido por Billie August. Tem a participação de grandes atores, tais como Jeremy Irons, desempenhando o papel de Esteban Trueba; Meryl Streep, como Clara; Glenn Close, no papel de Férula; Winona Ryder, como Blanca; Antonio Banderas, como Pedro.
(Wikipédia)
«Barrabás chegou à família por via marítima», anotou a menina Clara com a sua delicada caligrafia. Já nessa altura tinha o hábito de escrever as coisas importantes e, mais tarde, quando ficou muda, escrevia também as trivialidades, sem suspeitar que cinquenta anos depois os seus cadernos me iriam servir para resgatar a memória do passado e sobreviver ao meu próprio espanto. O dia em que chegou Barrabás era Quinta-Feira Santa. Vinha numa jaula indigna, coberto dos próprios excrementos e de urina, com um olhar extraviado de preso miserável e indefeso, adivinhando-se, porém, pelo porte real da cabeça e pelo tamanho do esqueleto o gigante lendário que veio a ser. Era uma dia aborrecido e outonal, que em nada fazia imaginar os acontecimentos que a menina registou para serem recordados e que ocorreram durante a missa das doze, na paróquia de San Sebastián, à qual assistiu com toda a família. Em sinal de luto, os santos estavam tapados com panos roxos que as beatas sacudiam anualmente no arcaz da sacristia e, por baixo dos lençóis de luto, a corte celestial parecia um amontoado de móveis esperando mudança, sem que as velas, o incenso ou os gemidos do órgão pudessem contrastar com esse lamentável efeito. Erguiam-se vultos ameaçadores no lugar dos santos de corpo inteiro, com rostos idênticos, de expressão enjoada, com complicadas cabeleiras de cabelo de morto, rubis, pérolas, esmeraldas de vidro pintado e vestuário de nobres florentinos. O único favorecido com o luto era o padroeiro da igreja, São Sebastião, porque, na Semana Santa, reservava para os fiéis o espectáculo do seu corpo torcido numa posição indecente, atravessado por meia dúzia de flechas, escorrendo sangue e lágrimas, como um homossexual sofredor, cujas chagas, milagrosamente frescas graças ao pincel do padre Restrepo, faziam Clara estremecer de nojo. Era uma longa semana de penitência e jejum, não se jogava às cartas, não se tocava música que incitasse à luxúria e ao esquecimento, observava-se, na medida do possível, a maior tristeza e castidade, apesar de, justamente nesses dias, o aguilhão do demónio tentar com maior insistência a débil carne católica. O jejum consistia em tenros pastéis de massa folhada, saborosos guisados de legumes, fofas tortilhas e grandes queijos trazidos do campo, com que as famílias recordavam a Paixão do Senhor, tendo o cuidado de não provar o mais pequeno pedaço de carne ou de peixe, sob pena de excomunhão, como dizia, insistindo, o padre Restrepo. Ninguém se atreveria a desobedecer-lhe.
Podcast (estudio-raposa-audiocast): Download
15.12.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar
Depois de se arrepender de todas as guloseimas que rejeitou por vaidade e as oportunidades de fazer amor que rechaçou por atitude puritana ou outros compromissos, a escritora chilena Isabel Allende tenta redimir-se com seu livro Afrodite: contos, receitas e outros afrodisíacos. A escritora, famosa por romances como A casa dos espíritos e De amor e de sombras, conta as coisas que aconteceram em sua vida de nómada com doses cavalares de fantasia. E assim, nas suas obras, desfilam avós etéreas que se comunicam com fantasmas, tias virando anjos e tios que decidem que é melhor ser faquir, dentre outras personagens, que seriam membros da sua família.
Arrependo-me das dietas, dos pratos deliciosos rejeitados por vaidade, tanto como lamento as ocasiões de fazer amor que deixei passar por estar ocupada em tarefas pendentes ou por virtude puritana. Passeando pelos jardins da memória, descubro que as minhas recordações estão associadas aos sentidos. A minha tia Teresa, a que se foi transformando em anjo e morreu com indícios de asas nos ombros, está para sempre ligada ao cheiro dos rebuçados de violeta. Quando esta dama encantadora aparecia de visita com o seu vestido cinzento e a sua cabeça de rainha coroada de neve, nós as crianças corríamos ao seu encontro e ela abria com gestos rituais a sua velha mala, sempre a mesma, tirava uma pequena caixa de lata pintada e dava-nos um rebuçado cor de malva. E a partir de então, todas as vezes que o aroma inconfundível de violetas se insinua no ar, a imagem dessa tia santa, que roubava flores nos jardins alheios para levar aos moribundos do hospital, regressa intacta à minha alma. Quarenta anos depois eu soube que era esse o selo de Josefina Bonaparte, que confiava cegamente no poder afrodisíaco daquele aroma fugidio que tão depressa assalta com uma intensidade quase nauseabunda, como desaparece sem deixar rasto para logo voltar com renovado ardor. As cortesãs da Grécia antiga usavam-no antes de cada encontro amoroso para perfumar o hálito e as zonas erógenas, porque misturado com o odor natural da transpiração e as secreções femininas, alivia a melancolia dos mais velhos e agita de forma insuportável o espírito dos homens novos. No Tantra, filosofia mística e espiritual que exalta a união dos opostos em todos os planos, desde o cósmico até ao mais ínfimo, e na qual o homem e a mulher são espelhos de energias divinas, o violeta é a cor da sexualidade feminina, e por isso o adoptaram alguns movimentos feministas. O cheiro penetrante do iodo não me traz imagens de cortes ou cirurgias, mas sim de ouriços, essas estranhas criaturas do mar inevitavelmente relacionadas com a minha iniciação no mistério dos sentidos. Tinha eu oito anos quando a mão rude de um pescador pôs uma língua de ouriço na minha boca. Quando vou ao Chile, procuro a oportunidade de ir à costa para provar novamente ouriços recém-extraídos do mar, e de todas as vezes me oprime a mesma mistura de terror e fascínio que senti naquele primeiro encontro íntimo com um homem. Os ouriços são para mim inseparáveis desse pescador, do seu saco escuro de mariscos a escorrer água do mar e o meu despertar para a sensualidade.
Podcast (estudio-raposa-audiocast): Download