“No obscuro desejo”, poema de Vasco Graça Moura.
08.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
08.02.2022 | Produção e voz: Luís Gaspar
No obscuro desejo,
no incerto silêncio,
nos vagares repetidos,
na súbita canção
que nasce como a sombra
do dia agonizante,
quando empalidece
o exterior das coisas,
e quando não se sabe
se por dentro adormecem
ou vacilam, e quando
se prefere não chegar
a sabê-lo, a não ser,
pressentindo-as, ainda
um momento, na aresta
indizível do lusco-fusco.
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15.05.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar
na praia lá do guincho as velas
de windsurf saltam sobre as ondas
e o meu olhar, equestre,
pula nos peitos das banhistas, enquanto
um cachorro tenta agarrar a cauda.
nos feriados tudo é insuportável
menos o sol e o mar
apesar das famílias,
e sustendo as gaivotas na mais alta
imaginação, porque hoje não vi nenhuma,
o vento traz de tudo
de antónio nobre a lorca às pandas roupas
que modelam os corpos em míticas figuras
com o seu drapejado esvoaçante,
entre dunas e lixo e vendedores de gelados.
restaria o campo, mas
«no campo não há bicas nem paperbacks»
diz uma amiga minha e tem razão,
que seria de nós, bucólicos, sem esses
indicadores da alma? dou
lume a uma italiana e enquanto
ela agradece ocorre-me que despi-la já não é
cosa mentale; faz-me lembrar o algarve, mas no verão
o algarve é a continuação
da política por outros meios, antes
a rudeza atlântica do guincho, antes
a nortada, os surfistas
na crista da onda, a areia que entra no poema,
e o regresso mais cedo, quando já não se
aguenta.
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08.01.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar
sei de pintores que se inquietavam por
pressentirem uma relação entre a cor e a palavra,
era nos anos sessenta em s. lázaro, quando
a luz entardecia, muita gente se afadigava no
lento regresso a casa, as aves recolhiam e
eles sabiam que havia alguém para falar
das águas e das luas e da sombra
das cores, dos gestos entre as hastes e os farrapos
do silêncio, seria à mesa do café, numa
sala cheia de livros, num vão de escada a caminho
do atelier que lhe propunham essa
revisita das fontes, das perturbadas melancolias
que ele havia de dizer por palavras no papel,
mostravam-lhe os trabalhos, esperando as
justas perífrases, os ritmos em que haviam de rever
a sua fome do real nas artes da pintura.
era o cruzar das solidões comovidas: tudo
seria reescrito, portuense, partilhado
com uma densa, irisada exactidão, lá onde
umas pétalas da música começam
a partir de uma cor ou de um murmúrio,
de um rosto ou de uma nuvem,
de uma explosão do sol, de uma agonia,
era nos anos sessenta, era em s. lázaro.
Poema de Vasco Graça Moura, ilustração de Alberto Péssimo, ambos retirados do livro “Aproximações a Eugénio de Andrade”, editado pela ASA com o patrocínio a BIAL, coordenação de José da Cruz Santos e Direção gráfica de Armando Alves.
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11.05.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar
quando eu morrer murmura esta canção
que escrevo para ti. quando eu morrer
fica junto de mim, não queiras ver
as aves pardas do anoitecer
a revoar na minha solidão.
quando eu morrer segura a minha mão,
põe os olhos nos meus se puder ser,
se inda neles a luz esmorecer,
e diz do nosso amor como se não
tivesse de acabar, sempre a doer,
sempre a doer de tanta perfeição
que ao deixar de bater-me o coração
fique por nós o teu inda a bater,
quando eu morrer segura a minha mão.
in “Antologia dos Sessenta Anos”
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
já ninguém morre de amor, eu uma vez
andei lá perto, estive mesmo quase,
era um tempo de humores bem sacudidos,
depressões sincopadas, bem graves, minha querida.
mas afinal não morri, como se vê, ah, não,
passava o tempo a ouvir deus e música de jazz,
emagreci bastante, mas safei-me à justa, oh yes,
ah, sim, pela noite dentro, minha querida.
a gente sopra e não atina, há um aperto
no coração, uma tensão no clarinete e
tão desgraçado o que senti, mas realmente,
mas realmente eu nunca tive jeito, ah, não,
eu nunca tive queda para kamikaze,
é tudo uma questão de swing, de swing minha querida,
saber sair a tempo, saber sair, é claro, mas saber,
e eu não me arrependi, minha querida, ah, não, ah, sim.
há ritmos na rua que vêm de casa em casa,
ao acender das luzes, uma aqui, outra ali,
mas pode ser que o vendaval um qualquer dia venha
no lusco-fusco da canção parar à minha casa,
o que eu nunca pedi, ah, não, manda calar a gente,
minha querida, toda a gente do bairro,
e então murmurarei, a ver fugir a escala
do clarinete: – morrer ou não morrer, darling, ah, sim.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
que eu sempre fui bom cavaquista
nem é preciso repeti-lo:
anos depois já só se avista
tanto canário, tanto grilo,
tanto gorjeio, tanto trilo
que de promessas se guarnece:
um mundo e outro, isto e aquilo,
e o povo tem o que merece.
vi engrossar de boys a lista,
vi saltitar mais do que esquilo,
de galho em galho ser artista,
e armar o estado em crocodilo.
voracidade? era do estilo.
economia? ai que arrefece!
vi portugal vendido ao quilo
e o povo tem o que merece.
vi muito pássaro na pista
já de asa murcha e intranquilo,
já sem alface nem alpista
e já sem grão dentro do silo,
secou a teta e o mamilo,
chegou a hora, chega o stress.
há vários anos que eu refilo,
e o povo tem o que merece.
senhor, na entrada deste asilo,
mordeu-se a isca da benesse
e o povo tem o que merece.
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25.06.2007 | Produção e voz: Luís Gaspar
Vasco Graça Moura é um intelectual respeitado e um político controverso.
É colaborador de jornais, revistas e de canais de televisão. Tem muitas das suas obras traduzidas para italiano, francês, alemão, sueco e espanhol. É autor de numerosos ensaios, alguns deles premiados, e de excelentes traduções literárias.
Em 2002 com chancela da Quetzal, publicou “O Enigma de Zulmira” romance baseado em factos reais, da vida de uma mulher no período ditatorial da primeira metade dos anos cinquenta, em Portugal.
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13.01.2006 | Produção e voz: Luís Gaspar
Neste programa, para alem de mais uma lenda, desta vez dum povo australiano, temos a escolha poética de Maria Alzira Seixo que contempla, entre outros, poetas como Vasco Graça Moura, António Nobre e Sebastião da Gama.
Um bau de jóias cintilantes.
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