Nota biográfica

Sofia de Melo Breyner Andresen (Porto, 6 de Novembro de 1919 — Lisboa, 2 de Julho de 2004) foi uma das mais importantes poetisas portuguesas do século XX. Foi a primeira mulher portuguesa a receber o mais importante galardão literário da língua portuguesa, o Prémio Camões, em 1999.

Sophia de Mello B. Andresen – “O Auriga”

31.03.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

auriga13

A nudez dos pés que o escultor modelou com amor e minúcia
Mostra a pura nudez do teu estar na terra
A longa túnica em seu recto cair diz o austero
Aprumo de prumo da tua juventude
O pulso fino a concisa mão divina dizem
O pensamento rápido e subtil como Athena
E a vontade sensível e serena:
A ti mesmo te guias como a teus cavalos

Os beiços de seiva inchados como fruto
Dizem o teu amor da vida extasiado e grave
E sob as pestanas de bronze nos olhos de esmalte e de ónix
Fita-nos a tua paixão tranquila
O teu projecto
De em ti mesmo celebrares a ordem natural do divino
O número imanente

Facebooktwittermailby feather

Sophia de Mello B. Andresen – “Pátria”

28.01.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

patria13

Por um país de pedra e vento duro Por um
país de luz perfeita e clara Pelo negro da
terra e pelo branco do muro

Pelos rostos de silêncio e de paciência Que a
miséria longamente desenhou Rente aos ossos
com toda a exactidão Dum longo relatório
irrecusável

E pelos rostos iguais ao sol e ao vento

E pela limpidez das tão amadas Palavras
sempre ditas com paixão Pela cor e pelo peso
das palavras Pelo concreto silêncio limpo das
palavras Donde se erguem as coisas nomeadas
Pela nudez das palavras deslumbradas

Pedra rio vento casa
Pranto dia canto alento
Espaço raiz e água
Ó minha pátria e meu centro

Me dói a lua me soluça o mar
E o exílio se inscreve em pleno tempo

Facebooktwittermailby feather

Sophia de Mello B. Andresen – “Com fúria e raiva”

03.07.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

assembleia

Com fúria e raiva acuso o demagogo
E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada
Que de longe muito longe um povo a trouxe
E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início
O homem soube de si pela palavra
E nomeou a pedra a flor a água
E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo
Que se promove à sombra da palavra
E da palavra faz poder e jogo
E transforma as palavras em moeda
Como se fez com o trigo e com a terra

Sophia de Mello Breyner Andresen, in “O Nome das Coisas”

Facebooktwittermailby feather

Sofia de Mello B. Andresen – “Catarina Eufémia”

30.06.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

catarina

O primeiro tema da reflexão grega é a justiça E eu
penso nesse instante em que ficaste exposta Estavas
grávida porém não recuaste Porque a tua lição é esta:
fazer frente

Pois não deste homem por ti
E não ficaste em casa a cozinhar intrigas
Segundo o antiquíssimo método oblíquo das mulheres
Nem usaste de manobra ou de calúnia
E não serviste apenas para chorar os mortos

Tinha chegado o tempo
Em que era preciso que alguém não recuasse
E a terra bebeu um sangue duas vezes puro
Porque eras a mulher e não somente a fêmea Eras
a inocência frontal que não recua Antígona poisou a sua mão
sobre o teu ombro no instante em que morreste

E a busca da Justiça continua

Facebooktwittermailby feather