Nota biográfica

Maria Leonor Nascimento nasceu em 1957, em Lisboa, de Mãe professora e Pai bancário e mestre de xadrez. Completou o curso de Engenharia Electrotécnica no IST , em 1981. Desde cedo estudou piano e começou a fazer poesia, tendo grande parte desta publicada no seu blogue "O Jardim de Aspásia".

Leonor Nascimento – “Sonho”

15.11.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Estava a sonhar, sabes?,
que éramos dois meninos aí da mesma idade,
de bibes azuis, joelhos esfolados,
e morávamos no mesmo bairro da grande cidade…
Um pouco tontos do sol da manhã,
brincávamos às escondidas e à apanhada
e lanchávamos, a meias, tarte de maçã.

Tu eras para o gorducho e pachorrento,
não eras assim lá muito de pressas…
e eu, magrizela e matreira,
ganhava quase sempre sem grandes chatices.
Então gostava de puxar-te os caracóis
e chamar-te “meu grande paspalhão”,
mas com um certo medo que tu descobrisses
que afinal já eras, entre os meus heróis,
o Principezinho do meu coração.

Às vezes, parecia que me olhavas desconfiado
com uns olhinhos doces por trás duns grandes óculos
e os caracóis colados à testa suada.
Aí, eu disfarçava, tirava o pente do bolso
e penteava-te dizendo: “Então que foi?”
E tu resmungavas: “Não foi nada. É do calor”,
com o teu arzinho sério e atrapalhado.
Então eu derretia, não tanto do calor,
talvez mais, se calhar,
da tua expressão de “homem cheio de azar”…
E murmurava-te ao ouvido, para te consolar,
a mais super-secreta declaração de amor:
“Deixa lá, meu pateta! Amanhã deixo-te ganhar.”

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Luís Filipe Castro Mendes – “Sonho”

19.03.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Numa casa de vidro te sonhei.
Numa casa de vidro me esperavas.
Num poço ou num cristal me debrucei.
Só no teu rosto a morte me alcançava.

De quem a morte, por terror de mim?
De quem o infinito que faltava?
Numa casa de vidro vi meu fim.
Numa casa de vidro me esperavas.

Numa casa de vidro as persianas
desciam lentamente e em seu lugar
a noite abria o escuro das entranhas
e o teu rosto morria devagar.

Numa casa de vidro te sonhei.
Numa casa de vidro me esperavas.
Fiz do teu corpo sonho e não olhei
nas palavras a morte que guardavas.

Descemos devagar as persianas,
deixámos que o amor nos corroesse
o íntimo da casa e as estranhas
cerimónias do dia que adoece.

Numa casa de vidro. Num espelho.
Na memória, por vezes amargura,
por vezes riso falso de tão velho,
cantar da sombra sobre a selva escura.

Numa casa de vidro te sonhei.
No vazio dessa casa me esperavas.

Luís Filipe Castro Mendes, in “Os Amantes Obscuros”

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Constança Lucas – “Sonho”

14.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Escuta este sonho não é para ti
ele pertence-me
não desisto do meu medo
da minha alegria
da minha amargura
de querer que acabe a realidade
tudo me cansa
tão profundamente
quando me querem invadir
nos meus sonhos
mesmo não os conhecendo

E por vezes quero que me deixem
ver o mundo
mandar a realidade tomar banho
mudar de cheiro
deixar de me perseguir
nesta angústia de nada poder
e ao mesmo tempo saber
que tanto posso

Sonho nas noites
de dias sem tempo
acordada ou mesmo a dormir
sempre num parque
de cores caídas
nesta nossa casa
tão nossa
mas os sonhos
alguns são só meus

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Graça Pires – “Sonho”

07.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Todos os dias me descubro

personagem de uma fábula

de sílabas e barcos,

entrançando as veias

no joelho da terra

como urzes incensadas no vento.



É quase eterna a raiz,

do corpo ou do mundo,

no tom húmido que agasalha

a semente, quando a erva cortada

se respira no sonho exausto

das árvores disponíveis.



Rodopio no emaranhado das sombras

que tocam os meus pés

e sobrevoo o chão movediço

que brilha nos meus olhos

como uma âncora ou um abraço.



Há um voo incerto na fita negra

enroscada, ao nascer, nos meus cabelos.



Pela vertente da tarde

deixo rolar as emoções,

desmedidamente,

como quem desvenda

os ângulos do improviso,

até à mutação perfeita da tristeza.



Presos ao lugar de nascer

não seremos os mesmos,

porque o grito das nuvens

há-de derreter o barro

que nos prende,

ou transformará em granito

o prolongamento do silêncio.



Conheço o oblíquo movimento dos pássaros

no pulsar perturbado do meu corpo,

quando é de musgo a periferia de um bosque.



Porque sou a significação extraviada do poema

é que os meus olhos se acendem na fragilidade.

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