Nota biográfica

Os textos apresentados nesta página foram publicados e copiados do livro "Rosa do Mundo - 2001 poemas para o futuro" editado pela Assírio & Alvim com direcção editorial de Manuel Hermínio Monteiro. A música que serve de fundo a estes textos é de autoria de Luís Pedro Fonseca e amavelmente cedida ao Estúdio Raposa.

Lenda – “A Origem do Universo”

08.11.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

América do Norte, Cahuillas

ORIGEM DO UNIVERSO
Reinavam as trevas sobre o universo. Ocasionalmente, ouviam-se estrondos e ruídos. Certa vez, as cores branca, azul, vermelha e castanha envolveram-se numa espiral e uniram-se num ponto distante e imensurável do qual surgiu uma grande bola de fogo. Esta continuou a rodopiar sobre si até que se condensou numa placenta que se dividiu em dois embriões. O universo começava a agitar-se. Prematuramente, as crianças rasgaram o embrião e morreram, pelo que o universo voltou a contrair-se e a imobilizar-se.
As cores voltaram a juntar-se, repetiu-se o processo, mas, desta vez, as crianças sobreviveram. O universo, que então já respirava, cedo começou a ser disputado por duas crianças; Mukat e Temaiyauit combatiam entre si para decidirem quem era o mais velho e quem teria assim direito a governar sobre as coisas do cosmos. A disputa prometia durar eternamente, mas os dois irmãos acabaram por decidir separar-se e dividir a criação entre si. Porém, Temaiyauit quis levar consigo a terra e os céus, regiões estas que não estavam contempladas no acordo estabelecido. Mukat colocou então um joelho sobre a terra, segurando com uma mão o céu e com a outra as demais criaturas. Deste gesto nasceram os vales, as montanhas, as fendas dos rios e as águas que os enchem. Derrotado, Temaiyauit rasgou a superfície da terra de forma a levar para o mundo crónico os seres que criou. Desde então, a terra tem este aspecto acidentado e irregular.

Trad.: Manuel João Magalhães
Música de Luís Pedro Fonseca

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Almada Negreiros – “Rosa dos ventos”

08.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

rosa

Não foi por acaso que o meu sangue veio do sul
se cruzou com o meu sangue que veio do norte
não foi por acaso que o meu sangue que veio do oriente
encontrou o meu sangue que estava no ocidente
não foi por acaso nada do que hoje sou
desde há muitos séculos se sabia
que eu havia de ser aquele onde se juntariam todos os sangues da terra
e por isso me estimaram através da História
ansiosos por este meu resultado que até hoje foi sempre futuro.
E aqui me tendes hoje
incapaz de não amar a todos
um por um
que todos são meus e me pertencem
e por isso mesmo lhes não perdoo faltas de amor!
Mas porque maldição me não entendem
se eu os entendo a todos?
Eu sei, eu sei porquê:
Falta-lhes a eles terem, como eu, a correr-lhes pelas veias todos os sangues da terra.
A lei é clara: ninguém ama senão os seus.
E os meus são os de todos os sangues da terra
mas, ó maldição que pesa sobre mim,
cada um dos sangues da terra não me inclui entre os seus!
Não pertenço a nenhum sangue de raça
sou da raça de todos os sangues,
o meu amor não tem condições que excluam criaturas
não é amor natural
é amor buscado por boas mãos
desde o primeiro dia das boas mãos
através de tempos desiguais e de estilos que se contradizem
com os olhos no futuro melhor
e a esperança convicta de que se ainda hoje não são todos como eu
é questão apenas de a humanidade viver outra vez
tanto como viveu até hoje,
ou de mais ainda,
é questão de mais tempo,
ainda mais tempo,
é o tempo que há-de fazer
o que apenas se pode atrasar,
Entretanto deixai que se convençam
aquelas experiências que ainda não se tinham feito
e ainda tão longe do realismo da redondeza da terra!
Entretanto deixai que os números se espantem
de que a totalidade seja sempre ainda mais pr’além!
Deixai os números instruir-se da verdadeira capacidade do infinito
deixai que a ciência prossiga em sua loucura galopante
explicando todas as suas falhas com desculpas geniais
enquanto não esgota a sua especialidade,
a especialidade de nos meter a todos nela,
o que é um estilo
um estilo mais
e não o último
porque nenhum estilo é o último senão a liberdade!
Deixai que milhões se juntem para formar uma força
enquanto outros isolados se reconheçam o bastante para ter a liberdade,
deixai-os a ambos que nada os deterá,
eles são duas metamorfoses minhas
das quais mais conservo uma vaga memória.
Tal qual eles agora, eu já estive num e noutros antigamente,
quando na História
nos altos e baixos da minha ascendência
tomei também cada metamorfose minha
por minha definitiva realidade.
Deixai primeiro que o sangue deles
leve tanto tempo a dar a volta ao mundo
como o que levou o meu sangue ou a História do Homem.
Deixai que a natureza consinta ainda em parcialidades que o tempo consente temporariamente.
Deixai que o ardente desejo de totalidade, não possa ainda funciona
senão pelo meio ou pelas pontas.
Deixai que cada especialidade acabe de vez com a sua impertinência Deixai que os sangues mais intactos morram por isolamento
ou espalhem morte e terror com o verdadeiro medo a certeza de acabar.
Deixai que a Democracia e a Aristocracia
se cansem de não caber isoladas em parte nenhuma
já que não cabem juntas no nosso entendimento.
Deixai que Uma e Outra esgotem todos os quadriláteros onde a Democracia não cabe
e, por conseguinte, a Aristocracia não sai.
Deixai sumir-se até ao fim a confusão de Nobreza e Fidalguia com
Aristocracia.
Deixai que a Democracia repare que é um corpo sem cabeça
e que a Aristocracia uma cabeça sem corpo.
E é o corpo que há-de buscar a cabeça
ou a cabeça que há-de buscar o corpo?
Esperai que venha esta resposta.
Entretanto deixai que a liberdade também esteja à espera desta resposta.
Deixai que se expliquem por si coisas terrenas que nada mais ultrapassem do que o nosso entendimento
condenado a acreditar nos sentidos
mais do que em todo o trajecto desde o princípio do mundo até hoje.

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