Nota biográfica

José Gomes Ferreira (Porto, 9 de Junho de 1900 - Lisboa, 8 de Fevereiro de 1985) foi um escritor e poeta português. Estudou nos liceus de Camões e de Gil Vicente onde teve o primeiro contacto com a poesia. Colaborou com Fernando Pessoa, ainda muito jovem. Está em todos os grandes momentos "democráticos e antifascistas" e colabora com outros poetas neo-realistas num álbum de canções revolucionárias compostas por Fernando Lopes Graça, com a sua canção "Não fiques para trás, ó companheiro".

José Gomes Ferreira – “Panfleto contra a paisagem”

03.03.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

pobreza13

(Este poema foi cortado pela Censura na revista “Vértice” de 

Coimbra. Acontecia isto no tempo do Salazar)

Apaga-te, lua!
– lâmpada dos lírios e dos cães.

Não finjas de alma
esta realidade violenta
que me dói até às raízes.

Não pintes de mistério
estas bocas de fome
onde só há metafísicas de pão negro.

Não abras asas
na planície das pedras
de fogo apodrecido.

Apaga-te lua!
Peço-te que te apagues!
Para os tímidos poderem amar-se à vontade na sombra sem olhos,
para os humilhados de botas rotas cantarem serenatas
às castelãs de carne invisível,
para as feias se entregarem nuas e abertas ao sexo da noite,
para os trémulos morrerem heróicos em barricadas de imaginação,
para os famintos devorarem com volúpia de vergonha o pão
verde dos caixotes,
para os cegos dizerem: “Não vemos porque não há luar!”,
para os mendigos sonharem em voz alta que são reis a
arrastar mantos negros,
para os escorraçados saírem dos canos lôbregos,
e forrarem o mundo de luz própria como as estrelas,
para os ladrões velhinhos arrombarem as caixas das esmolas
onde só os pobres deitaram moedas falsas,
para os visionários mergulharem as mãos na noite
em busca de outra lua sem vincos de caveira,
para as mães das caves convencerem os filhos: “Moramos
num palácio às escuras”…

Ouviste, lua?
Apaga-te!
lâmpada dos cães e dos poetas magros.

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José Gomes Ferreira – “Sofro, noite!”

02.03.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar

miseria13

Sofro, noite!

Não as dores metafísicas que os homens suam nas estrelas
para enfeitarem a fome da aristocracia das nuvens.
Não o terror súbito de nos vermos sozinhos na terra
sem uma voz nos astros que nos diga: «Cá estamos nós também!»
Não a tortura de saber se existe ou não existe
um Deus de carne igual à nossa a dar ordens às pedras.
Não a agonia dos lamentos que saem dos poços para o céu
e erram de árvore em árvore, de monte em monte, de corola em corola
com lobos voadores nos uivos dos vendavais.
Não o suor dos anjos na via láctea. O anseio do infinito. A angústia da sombra sem raízes.
Não o sufocar da treva no corredor cada vez mais estreito, cada vez mais estreito, cada vez mais estreito…
Não o assombro dos lírios negros. O gemer das almas nos cruzeiros
e todos os sofrimentos da lua habitada por fantasmas…

…Mas por outras razões mais desesperadamente vis,
mais limitadamente exíguas e directas,
como esta mulher de xaile aqui na minha frente
a sofrer o mistério da fome
perdida na noite imensa,
na noite inquieta,
na noite absurda
cheia de crianças a chorar
lágrimas para além das estrelas,
ah! mas mais profundas e eternas
do que todos os mistérios do universo
com o céu e o inferno dentro da cabeça dos homens.

Lágrimas! – ouviste, noite?

Lágrimas de crianças espantadas de haver olhos sem lágrimas na vida.
Lágrimas de carne humana a rasgarem o frio dos penedos
e a molharem de lume o clamor dos bichos
presos à solidão da terra.

Lágrimas, ouviste?

Ah! poetas: não olhemos mais para o céu.
Deixemos os mistérios para depois
quando não houver na noite
outras razões de sofrer mais vis.

Não olhemos mais para o céu!

Abaixo as estrelas, a lua, a via láctea
e todo esse espectáculo de luzes
como um candelabro de cometas
a iluminar a festa da miséria
no palácio do mundo.

Abaixo os astros! Essas caricaturas das lágrimas dos homens
de propósito belas e suspensas
para nos esquecermos das outras
que nos doem, nos olhos,
a inutilidade de chorar.

Lágrimas – ouviste, noite?
Lágrimas de grito!
Lágrimas de beber!

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José Gomes Ferreira – “Panfleto…”

12.05.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

Sofro, noite!

Não as dores metafísicas que os homens suam nas estrelas 

para enfeitarem a fome da aristocracia das nuvens.

Não o terror súbito de nos vermos sozinhos na terra 

sem uma voz nos astros que nos diga: “Cá estamos nós

também!”

Não a tortura de saber se existe ou não existe 

um Deus de carne igual à nossa a dar ordens às pedras.

Não a agonia dos lamentos que saem dos poços para o céu 

e erram de árvore em árvore, de monte em monte, de corola

em corola 

com lobos voadores nos uivos dos vendavais.

Não o suor dos anjos na via láctea. O anseio do infinito. A

angústia da sombra

sem raízes.

Não o sufocar da treva no corredor cada vez mais estreito,

cada vez mais

estreito, cada vez mais estreito… 

Não o assombro dos lírios negros. O gemer das almas nos

cruzeiros 

e todos os sofrimentos da lua habitada por fantasmas…

… Mas por outras razões mais desesperadamente vis,

mais limitadamente exíguas e diretas,

como esta mulher de xaile aqui na minha frente

a sofrer o mistério da fome

perdida na noite imensa,

na noite inquieta,

na noite absurda

cheia de crianças a chorar

lágrimas para além das estrelas,

ah! mas mais profundas e eternas

do que todos os mistérios do universo

com o céu e o inferno dentro da cabeça dos homens.

Lágrimas! – ouviste, noite?

Lágrimas de crianças espantadas de haver olhos sem lágrimas

na vida.

Lágrimas de carne humana a rasgarem o frio dos penedos 

e a molharem de lume o clamor dos bichos

presos à solidão da terra.

Lágrimas, ouviste?

Ah! poetas: não olhemos mais para o céu.

Deixemos os mistérios para depois

quando não houver na noite 

outras razões de sofrer mais vis.

Não olhemos mais para o céu!

Abaixo as estrelas, a lua, a via láctea 

e todo esse espectáculo de luzes 

como um candelabro de cometas 

a iluminar a festa da miséria

no palácio do mundo.

Abaixo os astros! Essas caricaturas das lágrimas dos homens

de propósito belas e suspensas

para nos esquecermos das outras

que nos doem, nos olhos,

a inutilidade de chorara.

Lágrimas! – ouviste, noite?

Lágrimas de grito!

Lágrimas de beber!

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