Pablo Neruda – “A noite na ilha”
29.04.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
Pablo Neruda (Parral, 12 de Julho de 1904 — Santiago, 23 de Setembro de 1973) foi um poeta chileno, bem como um dos mais importantes poetas da língua castelhana do século XX e cônsul do Chile na Espanha (1934 — 1938) e no México.
29.04.2015 | Produção e voz: Luís Gaspar
Dormi contigo toda a noite
junto ao mar, na ilha.
Eras doce e selvagem entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.
Os nossos sonos uniram-se
talvez muito tarde
no alto ou no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento agita,
em baixo como vermelhas raízes que se tocam.
O teu sono separou-se
talvez do meu
e andava à minha procura
pelo mar escuro
como dantes,
quando ainda não existias,
quando sem te avistar
naveguei a teu lado
e os teus olhos buscavam
o que agora
– pão, vinho, amor e cólera –
te dou às mãos cheias,
porque tu és a taça
que esperava os dons da minha vida.
Dormi contigo
toda a noite enquanto
a terra escura gira
com os vivos e os mortos,
e ao acordar de repente
no meio da sombra
o meu braço cingia a tua cintura.
Nem a noite nem o sono
puderam separar-nos.
Dormi contigo
e, ao acordar, tua boca,
saída do teu sono,
trouxe-me o sabor da terra,
da água do mar, das algas,
do âmago da tua vida,
e recebi teu beijo,
molhado pela aurora,
como se me viesse
do mar que nos cerca.
(Tradução de Albano Martins)
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19.10.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar
O Carteiro de Pablo Neruda deu origem a duas versões cinematográficas sendo a segunda um estrondoso êxito. Filme realizado por Michael Radford sobre a amizade entre o poeta chileno Pablo Neruda e um humilde carteiro que deseja aprender a fazer poesia.
Baseado no livro “Ardiente Paciencia” de Antonio Skármeta. O roteiro foi adaptado por Anna Pavignano, Michael Radford, Furio Scarpelli, Giacomo Scarpelli e Massimo Troisi que também interpretou o carteiro. Uma primeira versão do roteiro, feita por Troisi já havia sido realizada em 1983. O livro e a primeira versão do roteiro passavam-se no Chile, por volta de 1970, quando Neruda vivia na Ilha Negra. Na segunda versão passa-se na Itália nos anos 50.
O Carteiro de Pablo Neruda é vencedor de um Oscar® da academia em 1996 tendo sido nomeado para 5 estatuetas.
(Wikipédia)
Em Junho de 1969 dois motivos tão afortunados como triviais levaram Mário Jiménez a mudar de ofício. Primeiro, o seu desamor pelas lides da pesca que o arrancavam da cama antes do amanhecer, e quase sempre quando sonhava com amores audaciosos, protagonizados por heroínas tão abrasadoras como as que via no écran do cinematógrafo de San António. Este talante, juntamente com a sua consequente simpatia pelas constipações, reais ou fingidas, com que se escusava em média todos os dias a preparar os apetrechos do bote do seu pai, permitia-lhe retouçar debaixo das nutridas mantas chilenas, aperfeiçoando os seus oníricos idílios, até o pescador José Jiménez voltar do mar, encharcado e faminto, e ele aliviava o seu complexo de culpa preparando-lhe um almoço de estaladiço pão, sediciosas saladas de tomate com cebola, mais salsa e coentros, e uma dramática aspirina que engolia quando o sarcasmo do seu progenitor o penetrava até aos ossos.
Arranja trabalho. – Era a concisa e feroz frase com que o homem concluía um olhar acusador, que podia durar até dez minutos, e que de qualquer modo nunca durou menos de cinco.
Sim, pai – respondia Mário, limpando as narinas com a manga do colete.
Se este motivo foi o trivial, o afortunado foi a posse de uma alegre bicicleta marca Legnano, valendo-se da qual Mário trocava todos os dias o diminuto horizonte da calheta dos pescadores pelo quase mínimo porto de San António, mas que em comparação com o seu casario o impressionava como faustoso e babilónico. A simples contemplação dos cartazes do cinema com mulheres de bocas turbulentas e duríssimos parentes de havanos mastigados entre dentes impecáveis, deixava-o num transe do qual só saía após duas horas de celulóide, para pedalar desconsolado de volta à sua rotina, às vezes sob uma chuva marítima que lhe inspirava épicas constipações. A generosidade do pai não chegava ao ponto de fomentar a moleza, de modo que vários dias da semana, falto de dinheiro, Mário Jiménez tinha de conformar-se com incursões às lojas de revistas usadas, onde ajudava a manusear as fotos das suas actrizes preferidas.
Foi num desses dias de desconsolada vagabundagem que descobriu um aviso na janela dos correios a que, apesar de estar escrito à mão e numa modesta folha de caderno de contas, matéria em que não se tinha distinguido durante a escola primária, não conseguiu resistir.
Mário Jiménez nunca tinha usado gravata, mas antes de entrar endireitou o colarinho da camisa como se tivesse uma e tentou, com algum êxito, disfarçar com duas passagens de pente a sua cabeleira, herdada de fotos dos Beatles.
– Venho pelo anúncio – declamou ao funcionário, com um sorriso que emulava o de Burt Lancaster.
– Tem bicicleta? – perguntou aborrecido o funcionário.
O seu coração e os lábios disseram em uníssono:
– Sim.
Bom – disse o empregado, limpando as lentes, – trata-se de um lugar de carteiro para a Ilha Negra.
– Que coincidência – disse Mário. – Eu vivo mesmo ao lado, na calheta.
– Ainda bem. Mas o que está mal é que só há um cliente.
– Um e mais ninguém?
– Sim, claro. Na calheta são todos analfabetos. Não sabem ler nem as contas.
– E quem é o cliente?
– Pablo Neruda.
Mário Jiménez engoliu o que lhe pareceu um litro de saliva.
– Mas esse é formidável.
– Formidável? Recebe quilos de correspondência todos os dias. Pedalar com a sacola às costas é o mesmo que levar um elefante aos ombros. O carteiro que o servia reformou-se marreco que nem um camelo.
– Mas eu tenho só dezassete anos.
– E és saudável?
– Eu? Sou de ferro. Nem uma constipação em toda a vida!
O funcionário deixou escorregar os óculos pela cana do nariz e fitou-o por cima do guichet.
– O salário é uma merda. Os outros carteiros ainda se arranjam com as gorjetas. Mas só com um cliente, mal te vai chegar para o cinema uma vez por semana.
– Quero o lugar.
– Está bem. Eu chamo-me Cosme.
– Cosme.
– Tens de dizer «Don Cosme».
– Sim, Don Cosme.
– Sou o teu chefe.
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22.11.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Tira-me o pão, se quiseres,
tira-me o ar, mas
não me tires o teu riso.
Não me tires a rosa,
a flor de espiga que desfias,
a água que de súbito
jorra na tua alegria,
a repentina onda
de prata que em ti nasce.
A minha luta é dura e regresso
por vezes com os olhos
cansados de terem visto
a terra que não muda,
mas quando o teu riso entra
sobe ao céu à minha procura
e abre-me todas
as portas da vida.
Meu amor, na hora
mais obscura desfia
o teu riso, e se de súbito
vires que o meu sangue mancha
as pedras da rua,
ri, porque o teu riso será para as minhas mãos
como uma espada fresca.
Perto do mar no outono,
o teu riso deve erguer
a sua cascata de espuma,
e na primavera, amor,
quero o teu riso como
a flor que eu esperava,
a flor azul, a rosa
da minha pátria sonora.
Ri-te da noite,
do dia, da lua,
ri-te das ruas
curvas da ilha,
ri-te deste rapaz
desajeitado que te ama,
mas quando abro
os olhos e os fecho,
quando os meus passos se forem,
quando os meus passos voltarem,
nega-me o pão, o ar,
a luz, a primavera,
mas o teu riso nunca
porque sem ele morreria.
Pablo Neruda, in “Poemas de Amor de Pablo Neruda
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Ébrio de terebintina e longos beijos,
estival, o veleiro das rosas eu dirijo,
dobrado para a morte do finíssimo dia,
cimentado no sólido frenesi marinho.
Pálido e amarrado à minha água devorante
passo no azedo cheiro do clima descoberto,
vestido ainda de cinzento e sons amargos,
e uma cimeira triste de abandonada espuma.
Vou, duro de paixões, montado na minha onda única,
lunar, solar, ardente e frio, repentino,
adormecido na garganta das afortunadas
ilhas brancas e doces como nádegas frescas.
Treme na húmida noite o meu vestido de beijos
loucamente carregado de eléctricas gestões,
de modo heróico dividido em sonhos
e embriagadoras rosas exercitando-se em mim.
Contra a corrente, no meio das ondas externas,
o teu paralelo corpo aperta-se nos meus braços
como um peixe infinitamente agarrado à minha alma
rápido e lento na energia subceleste.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Recordo-te como eras no outono passado.
Eras a boina cinzenta e o coração em calma.
Nos teus olhos lutavam as chamas do crepúsculo.
E as folhas caíam na água da tua alma.
Fincada nos meus braços como uma trepadeira,
as folhas recolhiam a tua voz lenta e em calma.
Fogueira de estupor onde a minha sede ardia.
Doce jacinto azul torcido sobre a minha alma.
Sinto viajar os teus olhos e é distante o outono:
boina cinzenta, voz de pássaro e coração de casa para
onde emigravam os meus profundos desejos
e caíam os meus beijos alegres como brasas.
Céu visto de um navio. Campo visto dos montes:
a lembrança é de luz, de fumo, de lago em calma!
Para lá dos teus olhos ardiam os crepúsculos.
Folhas secas de outono giravam na tua alma.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Para o meu coração basta o teu peito,
para a tua liberdade as minhas asas.
Da minha boca chegará até ao céu
o que dormia sobre a sua alma.
És em ti a ilusão de cada dia.
Como o orvalho tu chegas às corolas.
Minas o horizonte com a tua ausência.
Eternamente em fuga como a onda.
Eu disse que no vento ias cantando
como os pinheiros e como os mastros.
Como eles tu és alta e taciturna.
E ficas logo triste, como uma viagem.
Acolhedora como um velho caminho.
Povoam-te ecos e vozes nostálgicas.
Eu acordei e às vezes emigram e fogem
pássaros que dormiam na tua alma.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Eu fui marcando com cruzes de fogo
o atlas branco do teu corpo.
A boca era uma aranha que corria a esconder-se.
Em ti, atrás de ti, temerosa, sedenta.
Histórias para contar-te à beira do crepúsculo
boneca triste e meiga, para que não estivesses triste.
Um cisne, uma árvore, algo longínquo e alegre.
O tempo da vindima, o tempo maduro e frutífero.
Eu que vivi num porto que era de onde te amava.
A solidão percorrida de sonho e de silêncio.
Encurralado entre o mar e a tristeza.
Calado, delirante, entre dois gondoleiros imóveis.
Entre os lábios e a voz, algo vai já morrendo.
Algo com asas de pássaro, algo de angústia e de olvido.
Da mesma forma que as redes não retêm a água.
Boneca minha, quase nem ficam gotas tremendo.
Mesmo assim algo canta entre estas palavras fugazes.
Algo canta, algo sobe até à minha ávida boca.
Oh poder celebrar-te com todas as palavras de alegria.
Cantar, arder, fugir, como um campanário nas mãos de um louco.
Triste ternura minha, mudas-te em quê de repente?
Quando eu cheguei ao vértice mais atrevido e frio
fecha-se o meu coração como uma flor nocturna.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Inclinado nas tardes lanço as minhas tristes redes
aos teus olhos oceânicos.
Ali se estira e arde na mais alta fogueira a minha solidão que esbraceja como um náufrago.
Faço rubros sinais sobre os teus olhos ausentes
que ondeiam como o mar à beira dum farol.
Somente guardas trevas, fêmea distante e minha,
do teu olhar emerge às vezes o litoral do espanto.
Inclinado nas tardes deito as minhas tristes redes
a esse mar que sacode os teus olhos oceânicos.
Os pássaros nocturnos debicam as primeiras estrelas
que cintilam como a minha alma quando te amo.
Galopa a noite na sua égua sombria
derramando espigas azuis por sobre o campo.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Quase fora do céu fundeia entre dois montes
uma metade da lua.
Girante, errante noite, a cavadora de olhos.
Quantas estrelas haverá estilhaçadas no charco.
Faz uma cruz de luto entre os meus olhos, foge.
Frágua de metais azuis, noites das caladas lutas,
o meu coração dá voltas como um volante louco.
Moça vinda de tão longe, trazida de tão longe,
às vezes refulge o seu olhar debaixo do céu.
Queixume, tempestade, remoinho de fúria,
passa por sobre o meu coração sem te deteres.
Vento dos sepulcros leva, despedaça, dispersa a tua raiz sonolenta.
Arranca as grandes árvores do outro lado dela.
Porém tu, moça clara, pergunta de fumo, espiga.
Era a que ia formando o vento com folhas iluminadas.
Por trás das montanhas nocturnas, branco lírio de incêndio,
ah nada posso dizer! Era feita de todas as coisas.
Ansiedade que fendeste o meu peito à facada, são horas de seguir outro caminho, onde ela não sorria.
Tempestade que enterrou os sinos, voltear turvo de borrascas
para quê tocá-la agora, para quê entristecê-la.
Ai, seguir o caminho que se afasta de tudo,
onde não esteja emboscada a angústia, a morte, o inverno,
com os olhos abertos entre o orvalho.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Também este crepúsculo nós perdemos.
Ninguém nos viu hoje à tarde de mãos dadas
enquanto a noite azul caía sobre o mundo.
Olhei da minha janela
a festa do poente nas encostas ao longe.
Às vezes como uma moeda
acendia-se um pedaço de sol nas minhas mãos.
Eu recordava-te com a alma apertada
por essa tristeza que tu me conheces.
Onde estavas então?
Entre que gente?
Dizendo que palavras?
Porque vem até mim todo o amor de repente
quando me sinto triste, e te sinto tão longe?
Caiu o livro em que sempre pegamos ao
[crepúsculo e como um cão ferido rodou a minha capa aos pés.
Sempre, sempre te afastas pela tarde
para onde o crepúsculo corre apagando estátuas.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Brincas todos os dias com a luz do universo.
Subtil visitadora, chegas na flor e na água.
És mais do que a pequena cabeça branca que aperto
como um cacho entre as mãos todos os dias.
Com ninguém te pareces desde que eu te amo.
Deixa-me estender-te entre grinaldas amarelas.
Quem escreve o teu nome com letras de fumo entre as estrelas do sul?
Ah deixa-me lembrar como eras então, quando ainda não existias.
Subitamente o vento uiva e bate à minha janela fechada.
O céu é uma rede coalhada de peixes sombrios.
Aqui vêm soprar todos os ventos, todos.
Aqui despe-se a chuva.
Passam fugindo os pássaros.
O vento. O vento.
Eu só posso lutar contra a força dos homens.
O temporal amontoa folhas escuras
e
solta todos os barcos que esta noite amarraram ao céu.
Tu estás aqui. Ah tu não foges.
Tu responder-me-ás até ao último grito.
Enrola-te a meu lado como se tivesses medo.
Porém mais que uma vez correu uma sombra estranha pelos teus olhos.
Agora, agora também, pequena, trazes-me madressilva,
e tens até os seios perfumados.
Enquanto o vento triste galopa matando borboletas
eu amo-te, e a minha alegria morde a tua boca de ameixa.
O que te haverá doído acostumares-te a mim,
à minha alma selvagem e só, ao meu nome que todos escorraçam.
Vimos arder tantas vezes a estrela d’alva beijando-nos os olhos
e sobre as nossas cabeças destorcerem-se os crepúsculos em leques rodopiantes.
As minhas palavras choveram sobre ti acariciando-te.
Amei desde há que tempo o teu corpo de nácar moreno.
Creio-te mesmo dona do universo.
Vou trazer-te das montanhas flores alegres,
«copihues»,
avelãs escuras, e cestos silvestres de beijos.
Quero fazer contigo
o que a primavera faz com as cerejeiras.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Abelha branca zumbes, ébria de mel, na minha
alma e enrolas-te em lentas espirais de fumo.
Eu sou o desesperado, a palavra sem ecos, aquele que perdeu tudo, e teve um dia tudo.
Última amarra, range em ti a minha ansiedade última. Na minha terra deserta és a última rosa.
Ah silenciosa!
Fecha os teus olhos profundos. Ali esvoaça a noite.
Ah desnuda o teu corpo de estátua temerosa.
Tens uns olhos profundos onde a noite adeja. Frescos braços de flor e regaço de rosa.
Parecem-se os teus seios com os caracóis brancos.
Veio dormir no teu ventre uma borboleta de sombra.
Ah silenciosa!
É esta a solidão de que tu estás ausente. Chove. O vento do mar caça errantes gaivotas.
A água anda descalça pelas ruas molhadas. Daquela árvore se queixam, como doentes, as folhas.
Abelha branca, ausente, ainda zumbes na minha alma.
Tu revives no tempo, fina e silenciosa.
Ah silenciosa!
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Vinho cor do dia
vinho cor da noite
vinho com pés púrpura
o sangue de topázio
vinho,
estrelado filho
da terra
vino, liso
como uma espada de ouro,
suave
como um desordenado veludo
vinho encaracolado
e suspenso,
amoroso, marinho
nunca coubeste num copo,
num canto, num homem,
coral, gregário és,
e quando menos mútuo.
O vinho
move a primavera
cresce como uma planta de alegria
caem muros,
penhascos,
se fecham os abismos,
nasce o canto.
Oh tú, jarra de vinho, no deserto
com a saborosa que amo,
disse o velho poeta.
Que o cântaro do vinho
ao peso do amor some seu beijo.
Amo sobre uma mesa,
quando se fala,
à luz de uma garrafa
de inteligente vinho.
Que o bebam,
que recordem em cada
gota de ouro
ou copo de topázio
ou colher de púrpura
que trabalhou no outono
até encher de vinho as vasilhas
e aprenda o homem obscuro,
no ceremonial de seu negócio,
a recordar a terra e seus deveres,
a propagar o cântico do fruto.
Vinho.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Corpo de mulher, brancas colinas, coxas brancas,
assemelhas-te ao mundo no teu jeito de entrega.
O meu corpo de lavrador selvagem escava em ti
e faz saltar o filho do mais fundo da terra.
Fui só como um túnel. De mim fugiam os pássaros,
e em mim a noite forçava a sua invasão poderosa.
Para sobreviver forjei-te como uma arma,
como uma flecha no meu arco, como uma pedra na minha funda.
Mas desce a hora da vingança, e eu amo-te.
Corpo de pele, de musgo, de leite ávido e firme.
Ah os copos do peito! Ah os olhos de ausência!
Ah as rosas do púbis! Ah a tua voz lenta e triste!
Corpo de mulher minha, persistirei na tua graça.
Minha sede, minha ânsia sem limite, meu caminho indeciso!
Escuros regos onde a sede eterna continua,
e a fadiga continua, e a dor infinita.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Na sua chama mortal te envolve a luz.
Absorta, pálida dolente, assim postada
contra as velhas hélices do crepúsculo
que em torno de ti dá voltas.
Muda, minha amiga,
sozinha na solidão desta hora de mortes
e cheia das vidas do fogo,
herdeira pura do dia destruído.
Do sol desabam uvas no teu vestido escuro.
Da noite as grandes raízes
crescem de súbito da tua alma,
e ao exterior regressam as coisas em ti ocultas,
de modo que um povo pálido e azul
de ti recém-nascido se alimenta.
Ó grandiosa e fecunda e magnética escrava
do círculo que em negro e doirado acontece:
erguida, tenta e alcança uma criação tão viva
que morrem suas flores, e cheia é de tristeza.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Ah vastidão de pinheiros, rumor de ondas quebrando,
lento jogos de luzes, sino tão solitário,
crepúsculo caindo nos teus olhos, boneca,
búzio terrestre, em ti a terra canta!
Em ti os rios cantam e a alma foge-me neles
como tu desejares e para onde tu quiseres.
Marca-me o caminho no teu arco de esperança
e soltarei em delírio a minha revoada de flechas.
Em torno de mim já vejo a tua cintura de névoa
e o teu silêncio acossa as minhas horas perseguidas,
e és tu com os teus braços de pedra transparente
onde ancoram meus beijos e a húmida ânsia faz ninho.
Ah a tua voz misteriosa que o amor escurece e dobra
no entardecer ressoante e morrendo!
Assim em horas profundas sobre os campos eu vi
dobrarem-se as espigas na boca do vento.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
É a manhã cheia de tempestade
no coração do verão.
Como lenços brancos de adeus viajam as nuvens
que o vento sacode com viageiras mãos.
Inumerável coração do vento
pulsando sobre o nosso silêncio apaixonado.
Zumbindo entre as árvores, orquestral e divino,
como uma língua cheia de guerras e de cantos.
Vento que leva em rápido roubo a ramaria
e desvia as flechas latentes dos pássaros.
Vento que a derruba em onda sem espuma
e substância sem peso, e fogos inclinados.
Despedaça-se e submerge o seu volume de beijos
combatido na porta do vento do verão.
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10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar
Para que tu me ouças
as minhas palavras
adelgaçam-se por vezes
como o rasto das gaivotas sobre as praias.
Colar, guizo ébrio
para as tuas mãos suaves como as uvas.
E vejo-as tão longe, as minhas palavras.
Mais que minhas são tuas.
Vão trepando pela minha velha dor como a hera.
Elas trepam assim pelas paredes húmidas.
Tu é que és a culpada deste jogo sangrento.
Elas vão a fugir do meu escuro refugio.
Tu enches tudo, amada, enches tudo.
Antes de ti povoaram a solidão que ocupas,
e estão habituadas mais que tu à minha tristeza.
Agora quero que digam o que eu quero dizer-te
para que tu me ouças como quero que me ouças.
O vento da angústia ainda costuma arrastá-las.
Furacões de sonhos ainda por vezes as derrubam.
Tu escutas outras vozes na minha voz dorida.
Pranto de velhas bocas, sangue de velhas suplicas.
Ama-me, companheira. Não me abandones. Segue-me.
Segue-me, companheira, nessa onda de angústia.
Mas vão-se tingindo com o teu amor as minhas palavras.
Ocupas tudo, amada, ocupas tudo.
Vou fazendo de todas um colar infinito
para as tuas brancas mãos, suaves como as uvas.
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20.05.2011 | Produção e voz: Luís Gaspar
Quarta e última parte da obra de Pablo Neruda “Vinte Poemas de Amor” com os seguintes poemas: “No meu céu ao crepúsculo…”, “Pensando, enredando sombras…”, “Aqui te amo…”, “Moça morena e ágil…” e “Posso escrever os versos…”.
Se deseja acompanhar a audição dos poemas com a leitura dos textos, clique AQUI.
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14.05.2011 | Produção e voz: Luís Gaspar
Primeira Parte desta obra de Pablo Neruda composta por cinco poemas:
“Corpo de mulher…”, “Na sua chama mortal…”, “Ah, vastidão dos pinheiros…”, “É a manhã cheia…” e “Para que tu me ouças…”.
Se quiser ler os poemas enquanto os ouve, ou fazer o seu download, clique AQUI.
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