Nota biográfica

Carlos Drummond de Andrade (Itabira, 31 de outubro de 1902 — Rio de Janeiro, 17 de agosto de 1987) foi um famoso poeta, contista e cronista brasileiro.

Carlos Drummond de Andrade – “O medo”

11.04.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

Em verdade temos medo.

Nascemos escuro.

As existências são poucas:

Carteiro, ditador, soldado.

Nosso destino, incompleto.



E fomos educados para o medo.

Cheiramos flores de medo.

Vestimos panos de medo.

De medo, vermelhos rios
vadiamos.


Somos apenas uns homens

e a natureza traiu-nos.

Há as árvores, as fábricas,

Doenças galopantes, fomes.



Refugiamo-nos no amor,

este célebre sentimento,

e o amor faltou: chovia,

ventava, fazia frio em São Paulo.



Fazia frio em São Paulo…

Nevava.

O medo, com sua capa,

nos dissimula e nos berça.



Fiquei com medo de ti,

meu companheiro moreno,

De nós, de vós: e de tudo.

Estou com medo da honra.



Assim nos criam burgueses,

Nosso caminho: traçado.

Por que morrer em conjunto?

E se todos nós vivêssemos?



Vem, harmonia do medo,

vem, ó terror das estradas,

susto na noite, receio

de águas poluídas. Muletas

do homem só. Ajudai-nos,

lentos poderes do láudano.

Até a canção medrosa

se parte, se transe e cala-se.



Faremos casas de medo,

duros tijolos de medo,

medrosos caules, repuxos,

ruas só de medo e calma.



E com asas de prudência,

com resplendores covardes,

atingiremos o cimo

de nossa cauta subida.



O medo, com sua física,

tanto produz: carcereiros,

edifícios, escritores,

este poema; outras vidas.



Tenhamos o maior pavor,

Os mais velhos compreendem.

O medo cristalizou-os.

Estátuas sábias, adeus.



Adeus: vamos para a frente,

recuando de olhos acesos.

Nossos filhos tão felizes…

Fiéis herdeiros do medo,



eles povoam a cidade.

Depois da cidade, o mundo.

Depois do mundo, as estrelas,

dançando o baile do medo.

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