Nota biográfica

Manuel Lopes Fonseca, (Santiago do Cacém, 15 de Outubro de 1911 — Lisboa, 11 de Março de 1993) foi um escritor (poeta, contista, romancista e cronista) português.

Manuel da Fonseca – “Solidão”

12.10.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar

Que venham todos os pobres da Terra
os ofendidos e humilhados
os torturados 
os loucos:

meu abraço é cada vez mais largo 

envolve-os a todos!
Ó minha vontade, ó meu desejo
— os pobres e os humilhados
todos
se quedaram de espanto!…
(A luz do Sol beija e fecunda
mas os místicos andaram pelos séculos
construindo noites
geladas solidões.)

(Manuel da Fonseca, in “Poemas Dispersos”)

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Manuel da Fonseca – “Romance do terceiro…”

03.12.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

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Romance do terceiro oficial de Finanças

Ah! As coisas incríveis que eu te contava
assim misturadas com luas e
estrelas e a voz vagarosa como o andar da noite!
As coisas incríveis que eu te contava
e me deixavam hirto de surpresa
na solidão da vila quieta!…
Que eu vinha alta noite
como quem vem de longe
e sabe o segredo dos grandes silêncios
– os meus braços no jeito de pedir
e os meus olhos pedindo
o corpo que tu mal debruçavas da varanda!…
(As coisas incríveis eu só as contava
depois de as ouvir do teu corpo, da noite
e da estrela, por cima dos teus cabelos.
Aquela estrela que parecia de propósito para enfeitar os teus
cabelos quando eu ia namorar-te…)
Mas tudo isso, que era tudo para nós,
não era nada da vida!…
Da vida é isto que a vida faz.
Ah! sim, isto que a vida faz!…
– isto de tu seres a esposa séria e triste
de um terceiro oficial de finanças da Câmara Municipal!…

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Manuel da Fonseca – “Amigo”

21.03.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

Amigo, 
tu que choras uma angústia qualquer 
e falas de coisas mansas como o luar 
e paradas 
como as águas de um lago adormecido, 
acorda! 
Deixa de vez 
as margens do regato solitário 
onde te miras 
como se fosses a tua namorada. 
Abandona o jardim sem flores 
desse país inventado 
onde tu és o único habitante. 
Deixa os desejos sem rumo 
de barco ao deus-dará 
e esse ar de renúncia 
às coisas do mundo. 
Acorda, amigo, 
liberta-te dessa paz podre de milagre 
que existe 
apenas na tua imaginação. 
Abre os olhos e olha, 
abre os braços e luta! 
Amigo, 
antes da morte vir 
nasce de vez para a vida. 

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Manuel da Fonseca – “Segunda”

28.06.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quando foi que demorei os olhos
sobre os seios nascendo debaixo das blusas,
das raparigas que vinham, à tarde, brincar comigo?…
… Como nasci poeta,
devia ter sido muito antes que as mães se apercebessem disso
e fizessem mais largas as blusas para as suas meninas.
Quando, não sei ao certo.

Mas a história dos peitos, debaixo das blusas,
foi um grande mistério.
Tão grande
que eu corria até ao cansaço.
E jogava pedradas a coisas impossíveis de tocar,
como sejam os pássaros quando passam voando.
E desafiava,
sem razão aparente,
rapazes muito mais velhos e fortes!
E uma vez,
de cima de um telhado,
joguei uma pedrada tão certeira,
que levou o chapéu do senhor administrador!
Em toda a vila,
se falou, logo, num caso de política;
e o senhor administrador
mandou vir, da cidade, uma pistola,
que mostrava, nos cafés, a quem a queria ver;
e os do partido contrário,
deixaram crescer o musgo nos telhados
com medo daquela raiva de tiros para o céu…

Tal era o mistério dos seios nascendo debaixo das blusas!

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Manuel da Fonseca – “Mataram a tuna”

16.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

ramada

Nos domingos antigos do bibe e pião
saía a Tuna do Zé Jacinto
tangendo violas e bandolins
tocando a marcha Almadanim.
Abriam janelas meninas sorrindo
parava o comércio pelas portas
e os campaniços de vir à vila
tolhendo os passos escutando em grupo.
Moços da rua tinham pé leve
o burro da nora da Quinta Nova
espetava orelhas apreensivo
Manuel da Água punha gravata!
Tudo mexia como acordado
ao som da marcha Almadanim
cantando a marcha Almadanim.
Quem não sabia aquilo de cor?
A gente cantava assobiava aquilo de cor …
(só a Marianita se enganava
ai só a Marianita se enganava
e eu matava-me a ensinar … )
que eu sabia de cor
inteirinha de cor
e para mim domingo não era domingo
era a marcha Almadanim!
Entanto as senhoras não gostavam
faziam troça dizendo coisas
e os senhores também não gostavam
faziam má cara para a Tuna:
– que era indecente aquela marcha parecia
até coisa de doidos:
não era música era raiva
aquela marcha Almadanim.
Mas Zé Jacinto não desistia.
Vinha domingo e a Tuna na rua
enchendo a rua enchendo as casas.
Voavam fitas coloridas
raspavam notas violentas
rasgava a Tuna o quebranto da vila
tangendo nas violas e bandolins
a heróica marcha Almadanim!
Meus companheiros antigos do bibe e pião
agora empregados no comércio
desenrolando fazenda medindo chita
agora sentados
dobrados nas secretárias do comércio
cabeças pendidas jovens-velhinhos
escrevendo no Deve e Haver somando somando
na vila quieta
sem vida
sem nada
mais que o sossego das falas brandas …
– onde estão os domingos amarelos verdes azuis encarnados
vibrantes tangidos bandolins fitas violas gritos
da heróica marcha Almadanim?!
Ó meus amigos desgraçados
se a vida é curta e a morte infinita despertemos e vamos
eia!
vamos fazer qualquer coisa de louco e heróico como era a Tuna do Zé Jacinto
tocando a marcha Almadanim!

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Manuel da Fonseca – “Poema de Domingo”

16.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Quando chega o domingo,
faço tenção de todas as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida.

Há quem vá para o pé das águas
deitar-se na areia e não pensar…
E há os que vão para o campo
cheios de grandes sentimentos bucólicos
porque leram, de véspera, no boletim do jornal:
« Bom tempo para amanhã»…
Mas uma maioria sai para as ruas pedindo,
pois nesse dia
aqueles que passeiam com a mulher e os filhos
são mais generosos.
Um rapaz que era pintor
não disse nada a ninguém
e escolheu o domingo para se matar.
Ainda hoje a família e os amigos
andam pensando porque seria.
Só não relacionam que se matou num domingo!
Mariazinha Santos
(aquela que um dia se quis entregar,
que era o que a família desejava,
para que o seu futuro ficasse resolvido),
Mariazinha Santos
quando chega domingo,
vai com uma amiga para o cinema.

Deixa que lhe apalpem as coxas
e abafa os suspiros mordendo um lencinho que sua mãe lhe bor­

dou,
quando ela era ainda muito menina…
Para eu contar isto
é que conheço todas as horas que fazem um dia de domingo!
À hora negra das noites frias e longas
sei duma hora numa escada
onde uma velha põe sua neta
e vem sorrir aos homens que passam!
E a costureirinha mais honesta que eu namorei
vendeu a virgindade num domingo
—porque é o dia em que estão fechadas as casas de penhores!

Há mais amargura nisto
que em toda a História das Guerras.

Partindo deste princípio.
que os economistas desconhecem ou fingem desconhecer,
eu podia destruir esta civilização capitalista, que inventou o domingo.
E esta era uma das coisas mais belas
que um homem podia fazer na vida!

Então,
todas as raparigas amariam no tempo próprio
e tudo seria natural
sem mendigos nas ruas nem casas de penhores…

Penso isto, e vou a grandes passadas…
E um domingo parei numa praça
e pus-me a gritar o que sentia,
mas todos acharam estranhos os meus modos
e estranha a minha voz…
Mariazinha Santos foi para o cinema
e outras menearam as ancas
—ao sol
como num ritual consagrado a um deus! —
até chegar o homem bem amado entre todos
com uma nota de cem na mão estendida…

Venha a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu fique rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras;
venha a ânsia do peito para os braços!

E vou a grandes passadas
como um louco maior que a sua loucura…
O rapaz que era pintor
aconchegou-se sobre a linha férrea
para que a morte o desfigurasse
e o seu corpo anónimo fosse uma bandeira trágica
de revolta contra o mundo.
Mas como o rosto lhe estava intacto
vai a família ao necrotério e ficou aterrada!
Conheci-o numa noite de bebedeira
e acho tudo aquilo natural.
A costureirinha que eu namorei
deixava-se ir para as ruas escuras
sem nenhum receio.
Uma vez que chovia até entrámos numa escada.
Somente sequer um beijo trocámos…
E isto porque no momento próprio
olhava para mim com um propósito tão sereno
que eu, que dela só desejava o corpo bom feito,
me punha a observar o outro aspecto do seu rosto,
que era aquela serenidade
de pessoa que tem a vida cheia e inteira.
No entanto, ela nunca pôs obstáculo
que nesse instante as minhas mãos segurassem as suas.
Hoje encontramo-nos aí pelos cafés…
(ela está sempre com sujeitos decentes)
e quando nos fitamos nos olhos,
bem lá no fundo dos olhos,
eu que sou homem nascido
para fazer as coisas mais heróicas da vida
viro a cabeça para o lado e digo:
—rapaz, traz-me um café…
O meu amigo, que era pintor,
contou-me numa noite de bebedeira:
—Olha,
quando chega domingo,
não há nada melhor que ir para o futebol…
E como os olhos se me enevoassem de água,
continuou com uma voz
que deve ser igual à que se ouve nos sonhos:
—.… no entanto, conheço um homem
que ia para a beira do rio
e passava um dia inteirinho de domingo
segurando uma cana donde caia um fio para a água…
… um dia pescou um peixe,
e nunca mais lá voltou…
O pior é pensar:
que hei-de fazer hoje, que toda a gente anda alegre
como se fosse uma festa?… —
O rapaz que era pintor sabia uma ciência rara,
tão rara e certa e maravilhosa
que deslumbrado se matou.

Pago o café e saio a grandes passadas.
Hoje e depois e todos os dias que vierem,
amo a vida mais e mais
que aqueles que sabem que vão morrer amanhã!

Mariazinha Santos,
que vá para o cinema morder o lencinho que sua mãe lhe bordou…
E os senhores serenos, acompanhados da mulher e dos filhos,
que parem ao sol
e joguem um tostão na mão dos pedintes…
E a menina das horas longas e frias
continue pela mão de sua avó…
E tu, que só andas com cavalheiros decentes,
ó costureirinha honesta que eu namorei um dia,
fita-me bem no fundo dos olhos,
fita-me bem no fundo dos olhos!

Então,
virá a miséria maior que todas
secar o último restolho de moral que em mim resta;
e eu ficarei rude como o deserto
e agreste como o recorte das altas serras:
e virá a ânsia do peito para os braços!

Domingo que vem,
eu vou fazer as coisas mais belas
que um homem pode fazer na vida!

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Manuel da Fonseca – “Estradas”

12.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não era noite nem dia.
Eram campos, campos, campos
abertos num sonho quieto.
Eram cabeços redondos
de estevas adormecidas.
E barrancos entre encostas
cheias de azul e silêncio.
Silêncio que se derrama
pela terra escalavrada
e chega no horizonte
suando nuvens de sangue.
Era a hora do poente,
quase noite e quase dia.
E nos campos, campos, campos
abertos num sonho quieto,
sequer os passos de Nena
na branca estrada se ouviam.
Passavam árvores serenas,
nem as ramagens mexiam,
e Nena, para lá do morro,
na curva desaparecia.
Já da noite que avançava
os longes escureciam.
Já estranhos rumores de folhas
Entre as esteveiras andavam,
quando, saindo um atalho,
veio à estrada um vulto esguio.
Tremeram os seios de Nena
sob o corpete justinho.
E uma oliveira amarela
debruçou-se da encosta
com os cabelos caídos!
Não era ladrão de estradas,
nem caminheiro pedinte,
nem nenhum maltês errante.
Era António Valmorim
que estava na sua frente.
– Ó Nena de Montes Velhos,
se te quisessem matar
quem te havera de acudir?
Sob o corpete justinho
uniram-se os seios de Nena.
– Vai-te António Valmorim.
Não tenho medo da morte,
só tenho medo de ti.
Mas já a noite fechava
a saída dos caminhos.
Já do corpete bordado
os seios de Nena saíam
– como duas flores abertas
por escuras mãos amparadas!. ..
Ai que perfume se eleva
do campo de rosmaninho!
Ai como a boca de Nena
se entreabre fria, fria!
Caiu-lhe da mão o saco
junto ao atalho das silvas
e sobre a sua cabeça
o céu de estrelas se abriu …
Ao longe subiu a lua
como um sol inda menino
passeando na charneca …
Caminhos iluminados
eram fios correndo cerros.
Era um grito agudo e alto
que uma estrela cintilou.
Eram cabeços redondos
de estevas surpreendidas.
Eram campos, campos, campos
abertos de espanto e sonho …

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Décima sétima Hora

06.09.2011 | Produção e voz: Luís Gaspar

Durante um pouco mais de uma hora, poderá ouvir poesia de Adélia Prado, Almada Negreiros, António Gedeão, Lobo Antunes (2 poemas), Eugénio de Andrade, Fernando Pessoa (8 poemas), Álvaro de Campos, Ferreira Gullar, George Brasens, Herberto Helder, Joaquim Pessoa, José Régio, Manuel António Pina e Manuel da Fonseca.

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030 – Escolhas poéticas de Urbano Tavares Rodrigues

10.02.2006 | Produção e voz: Luís Gaspar

Parte das escolhas poéticas de Urbano Tavares Rodrigues no livro Os Poemas da Minha Vida (Publico) fazem as palavras de ouro deste programa escritas por Manuel da Fonseca, David Mourão-Ferreira, Mário de Sá-Carneiro e José Gomes Ferreira.

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