José Saramago – “Declaração”

08.07.2018 | Produção e voz: Luís Gaspar

Não, não há morte.
Nem esta pedra é morta,
Nem morto está o fruto que tombou:
Dá-lhes vida o abraço dos meus dedos,
Respiram na cadência do meu sangue,
Do bafo que os tocou.
Também um dia, quando esta mão secar,
Na memória doutra mão perdurará,
Como a boca guardará caladamente
O sabor das bocas que beijou.

In Os Poemas Possíveis, 1966, p. 140.

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José Saramago – “Retrato do Poeta Quando Jovem”

17.03.2017 | Produção e voz: Luís Gaspar

Há na memória um rio onde navegam
Os barcos da infância, em arcadas
De ramos inquietos que despregam
Sobre as águas as folhas recurvadas.

Há um bater de remos compassado
No silêncio da lisa madrugada,
Ondas brandas se afastam para o lado
Com o rumor da seda amarrotada.

Há um nascer do Sol no sítio exacto,
À hora que mais conta duma vida,
Um acordar dos olhos e do tacto,
Um ansiar de sede inextinguida.

Há um retrato de água e de quebranto
Que do fundo rompeu desta memória,
E tudo quanto é rio abre no canto
Que conta do retrato a velha história.

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José Saramago – “Maria Magdala”

28.03.2016 | Produção e voz: Luís Gaspar

jesus

de “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” , Editorial Caminho, Lisboa, 1991.

(…)
como te chamas, 

Jesus, foi o que respondeu, e não disse de Nazaré, porque já antes o tinha declarado, 

como ela, por ser aqui que vivia, não disse de Magdala, quando, ao perguntar-lhe ele, por sua vez nome, respondeu que Maria. 

Com tantos movimentos e observações, acabou Maria de Magdala de fazer o penso ao pé dorido de Jesus, rematando-o com uma sólida e pertinente atadura,
Aí tens, disse ela. 
Como te devo agradecer, perguntou Jesus, e pela primeira vez os seus olhos tocaram os olhos dela, negros, brilhantes como carvões de pedra, mas onde trespassava, como uma água corresse, uma espécie de voluptuosa velatura que atingiu em cheio o corpo secreto de Jesus. 

A mulher não respondeu logo, olhava-o, por sua vez, como se o avaliasse, a pessoa que era, que de dinheiros bem se via que não estava provido o pobre moço,
e por fim disse, Guarda-me na tua lembrança, nada mais,
e Jesus, Não esquecerei a tua bondade, 
e depois, enchendo-se de ânimo, Nem te esquecerei a ti,
Porquê, sorriu a mulher,
Porque és bela,
Não me conheceste no tempo da minha beleza,
Conheço-te na beleza desta hora.
O sorriso dela esmoreceu, extinguiu-se,
Sabes quem sou, o que faço, de que vivo,
Sei,
Não tiveste mais que olhar para mim e ficaste a saber tudo,
Não sei nada,
que sou prostituta,
Isso sei,
Que me deito com homens por dinheiro,
Sim,
Então é o que te digo, sabes tudo de mim,
Sei só isso,
A mulher sentou-se junto dele, passou-lhe suavemente a mão pela cabeça, tocou-lhe na boca com a ponta dos dedos,
Se queres agradecer-me, fica este dia comigo,
Não posso,
Porquê,
Não tenho com que pagar-te,
Grande novidade,
Não te rias de mim,
Talvez não creias, mas olha que mais facilmente me riria de um homem com a bolsa cheia,
Não é só a questão do dinheiro,
Que é, então.
Jesus calou-se e voltou a cara para o lado.
Ela não o ajudou, podia ter-lhe perguntado, És virgem, mas deixou-se ficar calada, à espera.
Fez-se silêncio, tão denso e profundo, que parecia que apenas os dois corações soavam,
mais forte e rápido que o dele, o dela inquieto com a sua própria agitação.
Jesus disse, Os teus cabelos são como um rebanho de cabras descendo das vertentes pelas montanhas de Galaad.
A mulher sorriu e ficou calada.
Depois Jesus disse. Os teus olhos são como as fontes de Hesebon, junto à porta de Bat-Rabim.
A mulher sorriu de novo, mas não falou.
Então Jesus voltou lentamente o rosto para ela e disse, Não conheço mulher.
Maria segurou-lhe as mãos, Assim temos de começar todos, homens que não conheciam mulher, mulheres que não conheciam homem, um dia o que sabia ensinou, o que não sabia aprendeu,
Queres tu ensinar-me,
Para que tenhas de agradecer-me outra vez,
Dessa maneira, nunca acabarei de agradecer-te,
E eu nunca acabarei de ensinar,
Maria levantou-se, foi trancar a porta do pátio, mas primeiro dependurou qualquer coisa do lado de fora, sinal que seria de entendimento, para os clientes que viessem por ela, de que se havia cerrado a sua fresta porque chegara a hora de cantar,
Levanta-te, vento do norte, vem tu, vento do meio-dia, sopra no seu jardim e coma dos seus deliciosos frutos.
Depois, juntos, Jesus amparado, como fizera antes, ao ombro de Maria, esta prostituta de Magdala que o curou e o vai receber na sua cama,
entraram em casa, na penumbra propícia de um quarto fresco e limpo.
A cama não é aquela rústica esteira estendida no chão, com um lençol pardo por cima, que Jesus viu sempre em casa dos pais enquanto lá viveu, esta é um verdadeiro leito como o outro de que alguém disse, Adornei a minha cama com cobertas, com colchas bordadas de linho do Egipto, perfumei o meu leito com mirra, aloés e cinamono.
Maria de Magdala conduziu Jesus até junto do forno, onde o chão era de ladrilhos de tijolo, e ali, recusando o auxilio dele, por suas mãos o despiu e lavou, às vezes tocando-lhe o corpo, aqui e aqui, e aqui, com as pontas dos dedos, beijando-o de leve no peito e nas anca, de um lado e do outro.
Estes roces delicados faziam estremecer Jesus, as unhas da mulher arrepiavam-no quando lhe percorriam a pele.
Não tenhas medo, disse Maria de Magdala.
Enxugou-o e levou-o pela mão até à cama,
Deita-te, eu volto já.
Fez correr um pano numa corda, novos rumores de águas se ouviram, depois uma pausa,
o ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala apareceu, nua.
Nu estava também Jesus, como ela o deixara, o rapaz pensou que assim é que devia estar certo, tapar o corpo que ela descobrira teria sido como uma ofensa.
 Maria parou ao lado da cama, olhou-o com uma expressão que era, ao mesmo tempo, ardente e suave, e disse,
És belo, mas para seres perfeito, tens de abrir os olhos.
Hesitando, Jesus abriu-os, imediatamente os fechou, deslumbrado, tornou a abri-los e nesse instante soube o que em verdade queriam dizer aquelas palavras do rei Salomão:
As curvas dos teus quadris são como jóias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os teus seios são como dois filhinhos gémeos de uma gazela,
mas soube-o ainda melhor, e definitivamente, quando Maria se deitou ao lado dele, e tomando-lhe as mãos, puxando-as para si, as fez passar, lentamente, por todo o seu corpo, os cabelos e o rosto, o pescoço, os ombros, os seios, que docemente comprimiu, o ventre, o umbigo, o púbis, onde se demorou, a enredar e a desenredar os dedos, o redondo das coxas macias, e enquanto isto fazia, ia dizendo em voz baixa, quase num sussurro,
Aprende, aprende o meu corpo.
Jesus olhava as suas próprias mãos, que Maria segurava, e desejava tê-las soltas para que pudessem ir buscar, livres, cada uma daquelas partes, mas ela continuava, uma vez mais, outra ainda, e dizia,
Aprende o meu corpo, aprende o meu corpo.
Jesus respirava precipitadamente, mas houve um momento em que pareceu sufocar, e isso foi quando as mãos dela, a esquerda colocada sobre a testa, a direita sobre os tornozelos, principiaram uma lenta carícia, na direcção, uma da outra, ambas atraídas ao mesmo ponto central, onde, quando chegadas, não se detiveram mais do que um instante, para regressarem com a mesma lentidão ao ponto de partida, donde recomeçaram o movimento.
Não aprendeste nada, vai-te, dissera o Pastor, e quiçá quisesse dizer que ele não aprendera a defender a vida.
Agora Maria de Magdala ensinara-lhe,
Aprende o meu corpo, e repetia, mas doutra maneira, mudando-lhe uma palavra, e ele ai o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, que dizia,
Calma, não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti,
então sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava gritando,
impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava, ao mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu corpo sobre o dele, indo beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso beijo que desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável frémito.
(…)

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José Saramago – “Não me peçam razões”

20.11.2014 | Produção e voz: Luís Gaspar

hipocrisia14

Não me peçam razões, que não as tenho,
Ou darei quantas queiram: bem sabemos
Que razões são palavras, todas nascem
Da mansa hipocrisia que aprendemos.

Não me peçam razões por que se entenda
A força da maré que me enche o peito,
Este estar mal no mundo e nesta lei:
Não fiz a lei e o mundo não aceito.

Não me peçam razões, ou que as desculpe,
Deste modo de amar e destruir:
Quando a noite é de mais é que amanhece
A cor de primavera que há-de vir.

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“Ensaio sobre a lucidez” de José Saramago.

18.11.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

Num país qualquer, num dia chuvoso, poucos eleitores compareceram para votar, durante a manhã. As autoridades eleitorais, preocupadas, chegaram a supor que haveria uma abstenção gigantesca. À tarde, quase no encerramento da votação, centenas de milhares de eleitores compareceram aos locais de votação. Formaram-se filas quilométricas, e tudo pareceu normal. Mas, para desespero das autoridades eleitorais, houve quase setenta por cento de votos em branco. Uma catástrofe. Evidentemente que as instituições, partidos políticos e autoridades, haviam perdido a credibilidade da população. O voto em branco fora uma manifestação inocente, um desabafo, a indignação pelo descalabro praticado por políticos pertencentes aos partidos da direita, da esquerda e do meio. Políticos de partidos diferentes, mas de atuações iguais, usufruindo de privilégios que afrontavam a população. Os eleitores estavam cansados, revoltados.(Wikipédia)

Mau tempo para votar, queixou-se o presidente da mesa da assembleia eleitoral número catorze depois de fechar com violência o guarda-chuva empapado e despir uma gabardina que de pouco lhe havia servido durante o esbaforido trote de quarenta metros desde o lugar onde havia deixado o carro até à porta por onde, com o coração a saltar-lhe da boca, acabava de entrar. Espero não ter sido o último, disse para o secretário que o aguardava um pouco recolhido, a salvo das bátegas que, atiradas pelo vento, alagavam o chão. Ainda falta o seu suplente, mas estamos dentro do horário, tranquilizou o secretário, A chover desta maneira será uma autêntica proeza se cá chegarmos todos, disse o presidente enquanto passavam à sala onde se realizaria a votação. Cumprimentou primeiro os colegas da mesa que actuariam como escrutinadores, depois os delegados dos partidos e seus respectivos suplentes. Teve o cuidado de usar para todos as mesmas palavras, não deixando transparecer na cara nem no tom de voz quaisquer indícios que permitissem perceber as suas próprias inclinações políticas e ideológicas. Um presidente, mesmo de uma assembleia eleitoral tão comum como esta, deverá guiar-se em todas as situações pelo mais estrito sentido de independência, ou, por outras palavras, guardar as aparências.

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“Evangelho segundo Jesus Cristo”, de José Saramago

14.10.2013 | Produção e voz: Luís Gaspar

O livro conta uma história humanizada da vida de Jesus e alude a uma sua eventual relação com Maria Madalena (no livro, foi com ela que Jesus “conheceu o amor da carne e nele se reconheceu homem”). Ao adoptar essa perspectiva, de humanização de Cristo, distante da representação tradicional do Evangelho e evidenciando o seu caráter frágil e vulnerável, Saramago coloca que a propagada histórica da crucificação de Jesus, “um revulsivo forte, qualquer coisa capaz de chocar as sensibilidades e arrebatar os sentimentos”, resultou na imposição de “uma história interminável de ferro e de sangue, de fogo e de cinzas, um mar infinito de sofrimento e de lágrimas”, de acordo com a sua visão de mundo, segundo a qual “por causa e em nome de Deus é que se tem permitido e justificado tudo, principalmente o mais horrendo e cruel”, e que, “no fundo, o problema não é um Deus que não existe, mas a religião que o proclama. Denuncio as religiões, todas as religiões, por nocivas à Humanidade. São palavras duras, mas há que dizê-las”. Isso levou a que o livro fosse considerado ofensivo por diversos sectores da comunidade católica, a que ele sofresse perseguição religiosa em seu próprio país, e a que o governo português, pressionado pela Igreja Católica e por meio do então Subsecretário de Estado da Cultura de Portugal, Sousa Lara, vetasse este livro de uma lista de romances portugueses candidatos a um prémio literário europeu por “atentar contra a moral cristã”.
Em reacção a este acto do Subsecretário de Estado, que considerou censório, Saramago abandonou Portugal, passando a residir na ilha de Lanzarote, Ilhas Canárias, onde permaneceu até à sua morte.
(Wikipédia)

O sol mostra-se num dos cantos superiores do rectângulo, o que se encontra à esquerda de quem olha, representando, o astro-rei, uma cabeça de homem donde jorram raios de aguda luz e sinuosas labaredas, tal uma rosa-dos-ventos indecisa sobre a direcção dos lugares para onde quer apontar, e essa cabeça tem um rosto que chora, crispado de uma dor que não remite, lançando pela boca aberta um grito que não poderemos ouvir, pois nenhuma destas coisas é real, o que temos diante de nós é papel e tinta, mais nada. Por baixo do sol vemos um homem nu atado a um tronco de árvore, cingidos os rins por um pano que lhe cobre as partes a que chamamos pudendas ou vergonhosas, e os pés tem-nos assentes no que resta de um ramo lateral cortado, porém, por maior firmeza, para que não resvalem desse suporte natural, dois pregos os mantêm, cravados fundo. Pela expressão da cara, que é de inspirado sofrimento, e pela direcção do olhar, erguido para o alto, deve de ser o Bom Ladrão. O cabelo, todo aos caracóis, é outro indício que não engana, sabendo-se que anjos e arcanjos assim o usam, e o criminoso arrependido, pelas mostras, já está no caminho de ascender ao mundo das celestiais criaturas. Não será possível averiguar se este tronco ainda é uma árvore, apenas adaptada, por mutilação selectiva, a instrumento de suplício, mas continuando a alimentar-se da terra pelas raízes, porquanto toda a parte inferior dela está tapada por um homem de barba comprida, vestido de ricas, folgadas e abundantes roupas, que, tendo embora levantada a cabeça, não é para o céu que olha. Esta postura solene, este triste semblante, só podem ser de José de Arimateia, que Simão de Cirene, sem dúvida outra hipótese possível, após o trabalho a que o tinham forçado, ajudando o condenado no transporte do patíbulo, conforme os protocolos destas execuções, fora à sua vida, muito mais preocupado com as consequências do atraso para um negócio que trazia aprazado do que com as mortais aflições do infeliz que iam crucificar.
Ora, este José de Arimateia é aquele bondoso e abastado homem que ofereceu os préstimos de um túmulo seu para nele ser depositado o corpo principal, mas a generosidade não lhe servirá de muito na hora das santificações, sequer das beatificações, pois não tem, a envolver-lhe a cabeça, mais do que o turbante com que sai à rua todos os dias, ao contrário desta mulher que aqui vemos em plano próximo, de cabelos soltos sobre o dorso curvo e dobrado, mas toucada com a glória suprema duma auréola, no seu caso recortada como um bordado doméstico.
De certeza que a mulher ajoelhada se chama Maria, pois de antemão sabíamos que todas quantas aqui vieram juntar-se usam esse nome, apenas uma delas, por ser ademais Madalena, se distingue onomasticamente das outras, ora, qualquer observador, se conhecedor bastante dos factos elementares da vida, jurará, à primeira vista, que a mencionada Madalena é esta precisamente, porquanto só uma pessoa como ela, de dissoluto passado, teria ousado apresentar-se, na hora trágica, com um decote tão aberto, e um corpete de tal maneira justo que lhe faz subir e altear a redondez dos seios, razão por que, inevitavelmente, está atraindo e retendo a mirada sôfrega dos homens que passam, com grave dano das almas.

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José Saramago – “Maria Magdala”

10.01.2012 | Produção e voz: Luís Gaspar

de O Evangelho Segundo Jesus Cristo , Editorial Caminho, Lisboa, 1991.
[…]
como te chamas, 

Jesus, foi o que respondeu, e não disse de Nazaré, porque já antes o tinha declarado, 

como ela, por ser aqui que vivia, não disse de Magdala, quando, ao perguntar-lhe ele, por sua vez nome, respondeu que Maria. 

Com tantos movimentos e observações, acabou Maria de Magdala de fazer o penso ao pé dorido de Jesus, rematando-o com uma sólida e pertinente atadura,
Aí tens, disse ela. 
Como te devo agradecer, perguntou Jesus, e pela primeira vez os seus olhos tocaram os olhos dela, negros, brilhantes como carvões de pedra, mas onde trespassava, como uma água corresse, uma espécie de voluptuosa velatura que atingiu em cheio o corpo secreto de Jesus. 

A mulher não respondeu logo, olhava-o, por sua vez, como se o avaliasse, a pessoa que era, que de dinheiros bem se via que não estava provido o pobre moço,
e por fim disse, Guarda-me na tua lembrança, nada mais,
e Jesus, Não esquecerei a tua bondade, 
e depois, enchendo-se de ânimo, Nem te esquecerei a ti,
Porquê, sorriu a mulher,
Porque és bela,
Não me conheceste no tempo da minha beleza,
Conheço-te na beleza desta hora.
O sorriso dela esmoreceu, extinguiu-se,
Sabes quem sou, o que faço, de que vivo,
Sei,
Não tiveste mais que olhar para mim e ficaste a saber tudo,
Não sei nada,
que sou prostituta,
Isso sei,
Que me deito com homens por dinheiro,
Sim,
Então é o que te digo, sabes tudo de mim,
Sei só isso,
A mulher sentou-se junto dele, passou-lhe suavemente a mão pela cabeça, tocou-lhe na boca com a ponta dos dedos,
Se queres agradecer-me, fica este dia comigo,
Não posso,
Porquê,
Não tenho com que pagar-te,
Grande novidade,
Não te rias de mim,
Talvez não creias, mas olha que mais facilmente me riria de um homem com a bolsa cheia,
Não é só a questão do dinheiro,
Que é, então.
Jesus calou-se e voltou a cara para o lado.
Ela não o ajudou, podia ter-lhe perguntado, És virgem, mas deixou-se ficar calada, à espera.
Fez-se silêncio, tão denso e profundo, que parecia que apenas os dois corações soavam,
mais forte e rápido que o dele, o dela inquieto com a sua própria agitação.
Jesus disse, Os teus cabelos são como um rebanho de cabras descendo das vertentes pelas montanhas de Galaad.
A mulher sorriu e ficou calada.
Depois Jesus disse. Os teus olhos são como as fontes de Hesebon, junto à porta de Bat-Rabim.
A mulher sorriu de novo, mas não falou.
Então Jesus voltou lentamente o rosto para ela e disse, Não conheço mulher.
Maria segurou-lhe as mãos, Assim temos de começar todos, homens que não conheciam mulher, mulheres que não conheciam homem, um dia o que sabia ensinou, o que não sabia aprendeu,
Queres tu ensinar-me,
Para que tenhas de agradecer-me outra vez,
Dessa maneira, nunca acabarei de agradecer-te,
E eu nunca acabarei de ensinar,
Maria levantou-se, foi trancar a porta do pátio, mas primeiro dependurou qualquer coisa do lado de fora, sinal que seria de entendimento, para os clientes que viessem por ela, de que se havia cerrado a sua fresta porque chegara a hora de cantar,
Levanta-te, vento do norte, vem tu, vento do meio-dia, sopra no seu jardim e coma dos seus deliciosos frutos.
Depois, juntos, Jesus amparado, como fizera antes, ao ombro de Maria, esta prostituta de Magdala que o curou e o vai receber na sua cama,
entraram em casa, na penumbra propícia de um quarto fresco e limpo.
A cama não é aquela rústica esteira estendida no chão, com um lençol pardo por cima, que Jesus viu sempre em casa dos pais enquanto lá viveu, esta é um verdadeiro leito como o outro de que alguém disse, Adornei a minha cama com cobertas, com colchas bordadas de linho do Egipto, perfumei o meu leito com mirra, aloés e cinamono.
Maria de Magdala conduziu Jesus até junto do forno, onde o chão era de ladrilhos de tijolo, e ali, recusando o auxilio dele, por suas mãos o despiu e lavou, às vezes tocando-lhe o corpo, aqui e aqui, e aqui, com as pontas dos dedos, beijando-o de leve no peito e nas anca, de um lado e do outro.
Estes roces delicados faziam estremecer Jesus, as unhas da mulher arrepiavam-no quando lhe percorriam a pele.
Não tenhas medo, disse Maria de Magdala.
Enxugou-o e levou-o pela mão até à cama,
Deita-te, eu volto já.
Fez correr um pano numa corda, novos rumores de águas se ouviram, depois uma pausa,
o ar de repente tornou-se perfumado e Maria de Magdala apareceu, nua.
Nu estava também Jesus, como ela o deixara, o rapaz pensou que assim é que devia estar certo, tapar o corpo que ela descobrira teria sido como uma ofensa.
 Maria parou ao lado da cama, olhou-o com uma expressão que era, ao mesmo tempo, ardente e suave, e disse,
És belo, mas para seres perfeito, tens de abrir os olhos.
Hesitando, Jesus abriu-os, imediatamente os fechou, deslumbrado, tornou a abri-los e nesse instante soube o que em verdade queriam dizer aquelas palavras do rei Salomão:
As curvas dos teus quadris são como jóias, o teu umbigo é uma taça arredondada, cheia de vinho perfumado, o teu ventre é um monte de trigo cercado de lírios, os teus seios são como dois filhinhos gémeos de uma gazela,
mas soube-o ainda melhor, e definitivamente, quando Maria se deitou ao lado dele, e tomando-lhe as mãos, puxando-as para si, as fez passar, lentamente, por todo o seu corpo, os cabelos e o rosto, o pescoço, os ombros, os seios, que docemente comprimiu, o ventre, o umbigo, o púbis, onde se demorou, a enredar e a desenredar os dedos, o redondo das coxas macias, e enquanto isto fazia, ia dizendo em voz baixa, quase num sussurro,
Aprende, aprende o meu corpo.
Jesus olhava as suas próprias mãos, que Maria segurava, e desejava tê-las soltas para que pudessem ir buscar, livres, cada uma daquelas partes, mas ela continuava, uma vez mais, outra ainda, e dizia,
Aprende o meu corpo, aprende o meu corpo.
Jesus respirava precipitadamente, mas houve um momento em que pareceu sufocar, e isso foi quando as mãos dela, a esquerda colocada sobre a testa, a direita sobre os tornozelos, principiaram uma lenta carícia, na direcção, uma da outra, ambas atraídas ao mesmo ponto central, onde, quando chegadas, não se detiveram mais do que um instante, para regressarem com a mesma lentidão ao ponto de partida, donde recomeçaram o movimento.
Não aprendeste nada, vai-te, dissera o Pastor, e quiçá quisesse dizer que ele não aprendera a defender a vida.
Agora Maria de Magdala ensinara-lhe,
Aprende o meu corpo, e repetia, mas doutra maneira, mudando-lhe uma palavra, e ele ai o tinha, o seu corpo, tenso, duro, erecto, e sobre ele estava, nua e magnífica, Maria de Magdala, que dizia,
Calma, não te preocupes, não te movas, deixa que eu trate de ti,
então sentiu que uma parte do seu corpo, essa, se sumira no corpo dela, que um anel de fogo o rodeava, indo e vindo, que um estremecimento o sacudia por dentro, como um peixe agitando-se, e que de súbito se escapava gritando,

impossível, não pode ser, os peixes não gritam, ele, sim, era ele quem gritava, ao mesmo tempo que Maria, gemendo, deixava descair o seu corpo sobre o dele, indo beber-lhe da boca o grito, num sôfrego e ansioso beijo que desencadeou no corpo de Jesus um segundo e interminável frémito.

[…]

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018 – José Saramago

18.11.2005 | Produção e voz: Luís Gaspar

O nosso escritor, laureado com o Nobel, apesar disso, continua a escrever afanosamente.
Acaba de ser posto a venda, numa edição da Caminho, As Intermitências da Morte, de Jose Saramago e são desta obra as palavras de ouro que hoje escutamos.

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