Nota biográfica >>

Eugénio de Andrade, pseudónimo de José Fontinhas (Póvoa de Atalaia, 19 de Janeiro de 1923 — Porto, 13 de Junho de 2005). Apesar do seu enorme prestígio nacional e internacional, Eugénio de Andrade sempre viveu distanciado da chamada vida social, literária ou mundana, tendo o próprio justificado as suas raras aparições públicas com «essa debilidade do coração que é a amizade».

Eugénio de Andrade – “Terra de minha mãe”

09.01.2012

A minha relação com as terras baixas e interiores da Beira é materna, quero eu dizer: poética. A tão grande distância do tempo em que ali vivi os primeiros oito anos da minha vida, o rosto da minha mãe confunde-se com a cor doirado do restolho e daquela terra obscura onde emergem uns penedinhos com giesta á roda, e alguns sobreiros de passo largo a caminho do Alentejo. Mas também os olivais de muros baixos de pedra solta me chegam nas suas falas, as dela e as de toda essa gente de Póvoa de Atalaia, camponeses na sua quase totalidade; e quando o não eram, o seu ofício era ainda o de uma relação privilegiada com as coisas da terra: pedreiros, carpinteiros, ferreiros. Fora destes mesteres, o restante da população activa lavrava, semeava, sachava, colhia. Ou pastava o gado, e fabricava queijo, azeite, vinho, pão. Lembro-me do cheiro dos lagares, das queijarias, do forno, das forjas – eram cheiros que entravam pelas narinas como tantos outros, mas só esses se infiltravam no sangue e aí ficaram depositados em sucessivas camadas, para sempre, como ficou o aroma da esteva e do feno. E ainda o das folhas secas dos castanheiros, trazidos ás carradas e despejados ao lado do balcão – eu já as esperava e precipitadamente atirava-me sobre o montão da folhagem, com restos ainda do verão de S. Martinho; outros corpos caíam, um até sobre o meu, quente, demasiado quente, a boca próxima da minha, um beijo quase; voltávamos a subir os degraus do balcão, e o prazer e os gritos repetiam-se até que minha mãe chamava por mim: anoitecera, o avô já chegara, os tios também, toda a gente, por carreiros e quelhas de sombras, havia já regressado dos campos e o cheiro a coentros não tardaria a subir da panela. Ouvia a voz de minha mãe ralhar com doçura, enquanto me despia e mergulhava na selha.
Um porquinho, era o que eu era, um porquinho sem emenda – no dia seguinte regressaria ao montão de folhas, ou aos montes de feno, ou de palha, no canto da eira, tanto faz porque todos serviam para nos escondermos uns dos outros ou uns com os outros.
Depois da ceia arrumada a cozinha, às vezes a minha mãe sentava-se ao balcão e cantava. Cantava um desses romances de que entendia melhor o ritmo do que as palavras. E não tardava que outras vozes se misturassem com a sua, e não raramente se lhes juntava o som ácido de um realejo, ou do harmónio menos acidulado.
E foram esses ritmos, essas palavras de misterioso significado que me cativaram e passaram aos meus versos, mas isso só o soube mais tarde, depois de percorrer em livros outros caminhos. Porque esta é a poesia que sempre foi a minha: uma voz que no corpo se faz alma para que noutras almas regresse ao corpo. Essa poesia teve origem nestas terras, entre a luz esfarelada e a poeira levantada por cabras e ovelhas, rompeu na boca e no olhar daquela gente, despertou com o calor de outros corpos em enxergas de folhelho ou sobre a palha rala de alguma choça de pastor, quando eu anos mais tarde ali vinha ritualmente passar as férias grandes – grandes, grandes, grandes, porque então nem os dias nem as noites tinham fim. Será preciso dizer que foi também nestas terras que os sentidos despertaram e se abandonaram ao desejo de outro corpo?
Mas não foi só o amor, também a desordem e a morte foi aqui que primeiramente as toquei ou pressenti: às vertentes da poesia e da morte chega-se da mesma maneira. Lembro-me com rigor do nosso primeiro encontro, da primeira vez que nos fitámos nos olhos. Eu devia ter uns cinco anos e andava com a mãe e as tias no lameiro: elas regavam e eu chafurdava nos regos de água entre o milho alto e os feijoeiros pesados. De repente, minha mãe disse-me vem aí o teu pai.
Era impossível que não tivesse já ouvido aquela palavra, mas a mim sempre me pareceu que a escutara então pela primeira vez. Olhei: no caminho que passava rente às nossas terras, ele ia-se aproximando a cavalo, a mãe dele ao lado, na égua; certamente fora esperá-lo à estação, haviam atravessado a Póvoa, e agora ali estavam, cada vez mais próximos, a caminho do «monte do Ribeiro», de que ela era soberana e ele vassalo obediente. Eu estava em cima de um cômoro, na minha frente o senhorito parava o cavalo. Olhava-me sem se apear para um beijo ou uma festa. Também não me mexi, nem disse uma palavra. Por fim ouvi-lhe a voz: – Andas descalço? Foi minha mãe, que não estava longe, sem contudo ter interrompido o trabalho, quem lhe respondeu. – Diz-lhe que te compre umas botas, que tem obrigação disso. – Então, ele meteu a mão no bolso do colete, tirou umas moedas, talvez fossem escassas, pediu ajuda à mulher do lado, que se desculpou de não ter dinheiro consigo, aproximou-se mais, a mão estendida. Recusei virando-lhe as costas. Sem uma palavra, corri para a minha mãe: só ela era meu pai, o homem que vinha de ver pela primeira vez ia recusá-lo a vida inteira. Inteiramente.


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